O inimigo é o Outro
Nos últimos dias assistimos fascinados à operação de guerra montada pelas forças policiais do Estado na tentativa de retomar o território dominado pelo narcotráfico. O interessante é que essa caça aos bandidos veio acompanhada por uma série de justificativas morais em que as autoridades do Estado do RJ procuraram fundamentar a necessidade da intervenção militar. A mais célebre dessas declarações foi dada pelo comandante da operação que definiu a guerra contra o tráfico como a luta do Bem contra o Mal. Aqui, mobilizou-se a velha definição do Mal como a ausência do Bem, isto é, onde o Estado Democrático de Direito não encontra legitimidade, o mal (narcotráfico) prolifera. Mas e se essa definição fosse apanhada a contrapelo: o Mal não seria a sombra inominável do Bem, o seu reverso silenciado? Pensemos no conceito de Direitos Humanos – o nome do bem na modernidade; retomemos a lição de Marx sobre a lógica da sua determinação: a essência humana, onde tal conceito radica, é definida a partir da noção de cidadania burguesa; por essa razão, o Estado pode dispor arbitrariamente daqueles seres que são inumanos, excluídos do âmbito dessa noção – os que não estão incorporados no conjunto da força economicamente produtiva que gera os laços sociais regulares. Nesse sentido, o excesso inumano não integrado na noção de cidadania é a verdade dos Direitos Humanos: o narcotráfico é sua contrapartida lógica.
Isso não lembra a imagem dos traficantes correndo acuados pelo poder avassalador dos tanques? O caráter “humano” dos traficantes (e dos moradores reais das favelas alijados da cidadania, dos direitos individuais que a compõe – entrada violenta em suas casas, restrição do direito de ir e vir, etc.) desaparece no momento em os vemos em sua fuga desordenada; essa cena alimentou o desejo compartilhado de aniquilação do excesso malévolo – produzido no interior do próprio bem (e não como sua simples deturpação). Pois o que fazem os traficantes e as milícias – o “poder paralelo”; ironicamente, “paralelo” também significa “afim, análogo” – do que assumirem literalmente a violência despolitizada que subjaz os mecanismos de poder? E as favelas não são a produção do próprio Capital que exclui aqueles cuja única mercadoria vendável – sua força de trabalho – não pode ser incorporada aos seus propósitos? E as drogas não são o anverso da nossa sociedade permissiva que abole as formas sublimadas oferecendo acesso direto ao prazer? O crack é os esportes radicais dos excluídos.
O que parece permanecer silenciado na recepção entusiástica e eufórica da invasão militar é o ponto cego do Estado de Direito, aquilo que ele precisa necessariamente excluir para fundar sua soberania – a visão eufórica encobre aquilo que está nos fundamentos do Estado de Direito. O conceito de Direitos Humanos, fundado em uma suposta essência humana, se revela no seu inverso cruel e violento no momento em que nos defrontamos com a fuga alucinada e cômica dos bandidos: nesse instante os seres perdem todos as qualidades e propriedades específicas oriundas da noção de cidadania – que pertenceriam, formalmente, todo ser humano incluído na sociedade burguesa –, reduzidos à vida nua e crua, prontos para serem executados.
O paradoxo mais cruel da liberação dos morros cariocas é o de que a sociedade civil burguesa se articula para levar os direitos civis àqueles que estão incapacitados de exercê-los – pessoas que vivem à margem das relações sociais regulares de troca e de consumo. É como na cena cômica clássica em que uma socialite estúpida resolve dar um “banquete” aos famintos, com aquela mesa repleta de saladas e outros alimentos dietéticos.
Não é de maneira gratuita que a imprensa liberal burguesa procura camuflar a verdade ao insistir de maneira tão obscena sobre o caráter “humanitário” da ação – “Vejam! Agora essas pessoas têm paz, as favelas foram devolvidas a elas, liberamos os excluídos do controle exercido pelo tráfico” para caírem vítimas do Capital, devolvidas à sujeição de sua força de trabalho à instabilidade dos mercados, a empregos degradantes, à exploração e à violência. As pessoas reais do morro são Macabéas, vivendo em um limbo de impessoalidade, inspirando e expirando, sem nada mais que sua existência invisível. Mas por que a imprensa silencia sobre os interesses político-econômicos da operação de guerra (limpar o terreno para a Copa do Mundo e as Olimpíadas)? A única intrusão do real traumático em todo esse episódio foi a onda de carros queimados que aterrorizou as zonas onde as classes privilegiadas vivem, ameaçando o conforto e a segurança desses “humanos” por excelência. O resto não passou de encenação barata, assim como a imprensa auto-encena o retorno do paraíso aos favelados, buscando nos comover. Mas não é à toa que a liberdade de imprensa é a liberdade de mentir.
Por fim, só para parafrasear o subtítulo do filme “Tropa de Elite 2”: o inimigo é o Outro irredutível, aquele que encarna o excesso gerado pelos mecanismos e cálculos do Poder, o Outro sem rosto que sustenta a fantasia perversa dos Direitos Humanos a partir da qual exerce o direito de matar e de dar a vida.
André Susin - Mestre em Filosofia/UFRGS e Graduado em Filosofia/UNISINOS. Ator e colaborador do Grupo Válvula de Escape
André,
ResponderExcluirEu li, reli, trili teu texto. Fantástico. Corajoso. E, fundamentalmente, verdadeiro. Estou nas ruas há 21 anos, já combati o tráfico em cidades como Porto Alegre, Alvorada e Canoas. Sabe qual a impressão? Que é uma guerra suja, idiota, manipulada. Pobres contra pobres. Povo contra povo. Faço a minha parte, mas sempre tem um tampão onde, dali, não posso passar, senão me chutam, transferem, me prendem no quartel e o escambau. A pior droga deste país não é o crack, mas a corrupção. A podridão, a safadeza de uma burguesia sádica e inescrupulosa. Que comanda a cena, que me comanda. Os tanques, no Rio, deveriam apontar para aqueles que os mandaram até lá. Tem coisas que dão vergonha. Hoje, a violência é a seca do nordeste dos anos 80. Boa para discursos, desvios, campanhas e mídias. E para continuar existindo. Os caras são safados demais. Mostram a sujeira, chamam garis armados de vassouras, fazem o circo, promovem o show e cobram ingresso. Mas continuam defecando por onde passam, indiscriminadamente. Enfim, só para comentar. Parabéns. E a frase “o crack é o esporte radical do excluído” vou gravar para as palestras, citando tua autoria, claro. Sempre. Forte abraço.
"Fico muito agradecido pelos seus comentários generosos. Com certeza o senhor conhece essa realidade muito melhor do que eu e faz um belo trabalho de prevenção atraves de suas palestras. Podes usar como quiseres, sem citar referencias. Fico contente em saber que o texto teve boas repercusões. Forte Abraço." André Susin
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