Sobre a estréia de “O Assovio No Vento Escuro”-Grupo Válvula de Escape
Adriana Bandeira
O Grupo Válvula de Escape estréia a peça “Assovio no Vento escuro” trazendo o texto de Clarice Lispector à expressão melhor da dramaturgia. O texto escolhido “À hora da estrela” é resistente a encenação pela riqueza de frases, de textura própria da autora. Porém, o grupo veste esta roupagem e faz disto o fio próprio de seu tecer. Parto desta constatação ao vislumbrar nos artistas, direção, figurino, técnica, trilha sonora, enfim nas cenas que nos fizeram transgredir em espaços subjetivos íntimos e próprios, a falta de objeto a ser dado como já construído. O texto, cenas e interpretação são um convite para que cada um construa suas palavras, deixando vir a tona a alma, como Clarice o fez. Quando algo corrompe a natureza da acomodação e sacode nossa falha razão, estamos diante da Arte.
É desta forma que apresento três aspectos desta vivência: a temporalidade, a palavra e a sexualidade. Prometo dizer-me de forma contextualizada; prometo dizer-me de forma rápida; prometo dizer-me...um dia, quando este assovio passar!Pois é...acredito que é esta a questão.O que hoje situo como temporalidade ,no contexto desta vivência, poderá ser refeito sempre,numa construção contínua de inscrição.Para além disto existem momentos interessantes que apresentam este tempo também como espaço.São os momentos do assovio silencioso e eles estão em cena sempre.
Clarice é interrompida pelo personagem que a toma. Ora!Ela mesma diz: não fui eu que a inventei... Ela veio a mim!Sim!São as palavras, no seu tempo, que invadem Clarice num ritmo incessante de respiração. Ela, na exterioridade do vento, das nuvens e das crianças acaba por ser encurralada num tempo diferente: o da escrita. É a primeira parte, ainda no pátio da Estação da Cultura, onde somos convidados a adentrar ao subterrâneo da construção, ao úmido beco da indignação, de onde não retornaremos iguais. Nesta visita, a temporalidade da arquitetura, na descoberta da frase pura que retrata o que sustenta a antiga espera dos trens. A estação, o tempo... é da palavra.
É com a menina que fala a menina dela mesma, com quem dialoga sobre o futuro. Em todos os momentos de ternura, curiosidade, vida, enfim, é a menina Maca que ali está.Este duplo do eu que transforma-se em outros tantos, nos mostra a verdade acerca destas questões que nos habitam.Ali,a menina de quem não consegue se desvencilhar,aquela que já sabia,pelo que lhe antecedeu na sua história, que haveria de vingar a vida crua, nos aponta a verdade sobre o tempo.E como se vinga a vida crua?
As cartas não mentem jamais. Hão de guardar em forma e cor o destino inscrito num rosto sem encanto algum. Uma falha de momentos trocados em que o cômico invade a cena no doce infortúnio da cartomante que recebe a todos, desde o início.O futuro recebe a todos, sempre.
É neste caminhar entre as cenas que se descobre ainda o convite incessante para que se vá mais fundo numa temporalidade que acaba, somente, quando a morte vem. Mas o assovio...continua.É o tempo da respiração, desde o início, a querer mais e mais...palavra.Talvez porque para Clarice respirar e escrever fosse a mesma coisa.
O texto é denso e leve, falado e lido naquilo que a leitura de fato oferece: a invenção. As palavras da escritora são transcritas, reinventadas no jogo de luz, sons, interpretação e tempo.
De fato, a angústia da criação deixa a mostra a nudez de todos que ali estão. Não há como não inventar palavras enquanto estamos na cena. E estamos todos na cena com Macabea,Clarice,Olimpico,escrita,Glória,músico,menina,morte,cartomante,futuro,solidão.Não saímos impunes.O grupo nos oferece esta condição.
A sexualidade e a morte, na mesma moeda: cara ou coroa. A menina da boneca, a mulher da feiúra, a sensualidade da outra, a solidão da prostituta.
Clarice escreve como se fosse um homem, no texto. Talvez porque para ela, somente um homem pudesse dosar sua textura fálica a ponto de limitar numa frase ou palavra, num dito ou expressão, todo o gozo de morte que há na não existência. Talvez porque somente o masculino possa apresentar o que é do feminino; talvez somente ele possa dizer quem é ela.
Na transcrição do grupo a sexualidade faz seguir “O tempo”, voz em assovio que pega pela mão a mulher Clarice e a conduz na sua nudez. É a cena que se veste de toda a feminilidade possível, guardada pelo masculino que faz casa no prazer da expressão da palavra. Ali é ela quem diz sobre um ele. O grupo libera Clarice para que fale, na voz da atriz.
Saímos estarrecidos desta estréia!As cenas apontam em cada um o gozo de por tantas vezes não estarmos em reconhecimento como sendo um ele ou ela; como não existir, não ocupar espaço, não ter peso e nem rosto. Estas formas em que nos escondemos, que por vezes fazem com que sejamos Macabéa, num dia a dia em que não enunciamos nada que diga respeito a nós mesmos.É quando, desde o início até o final,Clarice pergunta: porque morrer?
Duplo estarrecimento, para mim, já no início. É Clarice que aponta a diferença antes de descer a escada. Quer saber como escrever sem ser “lacrimejante”... Que por ser mulher, quem sabe, tudo o que diz seja desta ordem. Fala-nos, secretamente, deste choro universal a que todos somos submetidos, vez ou outra. Pois bem... é isto.É comum acolhermos um autor ou uma autora de forma diferente, num entendimento de que as mulheres que escrevem soam melosas e os homens que escrevem, dizem coisas importantes. A voz... somos. O masculino e o feminino encantados em todo o corpo e fala que deseja viver. Porque morrer? Pelo instante...pelo instante se quer morrer.
Parabenizo a todos da cena, principalmente os artistas que representaram esta expressão de um si mesmo. Parabenizo Rosani, coordenadora do espaço da Estação da Cultura, pelo acolhimento ao grupo, cedendo o “subterrâneo” que fez composição com a palavra, o tempo e o afeto. Enfim, parabenizo a mim mesma por ter estado na estréia, por ter estado no meio de tudo, numa emoção estranha de, pelo instante, imaginar dividir palavras com Clarice.
Aguardo mais desta vivência e prossigo no que ainda não sei responder: porque escrever?
Aguardo muito mais deste grupo que estréia para fazer valer.
Sobre a estréia do grupo ESCAPE: “Assovio no vento escuro”
Adriana Bandeira em 11-12-2010
ADRIANA BANDEIRA é Psicóloga, escritora e colunista do Jornal O Progresso.
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