Dada a proximidade da estreia da peça “Assovio no Vento Escuro” – peça baseada na obra de Clarice Lispector “A Hora da Estrela” – montada pelo grupo Válvula de Escape, sob a criativa e dedicada direção de Diego Ferreira, talvez seja o momento adequado para se traçar algumas reflexões sobre a obra de Clarice Lispector em seu cruzamento com a encenação. Meu objetivo não é, certamente, fazer um comentário sobre a montagem, mas buscar evidenciar alguns aspectos relevantes da narrativa que podem ser percebidos em cena.
A proposta da dramaturgia, concebida pelo diretor do grupo, visa materializar a atmosfera da narrativa que mistura um tom nebuloso, em que a morte, o fracasso e a decepção dos projetos paira como uma constante sobre todos os episódios; aliado a essa tonalidade de um mundo composto por relações reificadas, mistura-se um ar cômico, muitas vezes beirando o melodramático, em que desponta a malandragem, a astúcia e a sensualidade cariocas. Contudo, não devemos nos deixar enganar por esse ambiente que muitas vezes resvala para o caricatural, pois o essencial deve ser apanhado do lado das relações reais, do processo dinâmico da ação, e não sobre o caráter estático dos personagens, sobre seus aspectos psicológicos abstratos. Nesse caso, o que desponta é o caráter miserável e alienado das relações, a qualidade degradante de encontros que parecem jamais ocorrer. Há uma incomunicabilidade persistente entre os personagens que incomoda o leitor-espectador, como se cada uma fosse um mundo fechado, uma ilha incontornável para o outro.
É nesse ponto que a obra de arte toca a verdade, deixa que ela fale a despeito de suas intenções. A verdadeira obra de arte, em que consiste a sua infinita grandeza, resume-se à enformação do que é escamoteado pela ideologia reinante. Ela torna visível, dá uma figura para as tensões e contradições que permeiam a sociedade. Nesse sentido é que ela fornece ao pensamento uma coisa que não pode ser completamente absorvida pelo conceito, em que toda síntese do pensamento abstrato fracassa, pois é incapaz de dar conta do caráter paradoxal da obra, o fato de ela reunir em um todo coerente a fissura que mantém aberto o campo da totalidade do simbólico e que inverte as posições estáveis e bem localizadas.
A personagem principal dessa trama é Macabéa, nordestina imigrante, adolescente feia e faminta que vem para uma cidade hostil, que não se conforma aos ideais fabricados pelo mundo do espetáculo capitalista e que vira do avesso sua inocência. Nesse mundo estranho, pode-se dizer que ela se torna uma estranha para si, uma pessoa deslocada em “uma cidade toda feita contra ela”. Macabéa é reduzida ao estatuto de Coisa situada entre a objetividade expressa na esfera coletiva e a subjetividade como ordem de um modo de ser particular.
Um dos aspectos que ressalta de sua personagem é a sua virgindade exacerbada, sua repressão constante dos afetos corporais. Essa virgindade exercida com extrema vigilância por ela mesma parece ser a introjeção das normas ascéticas veiculadas pela sua tia – aquela que a criou na ausência de seus pais – aquela que simboliza sua entrada na ordem das relações sociais, que funda as coordenadas de sua relação com o seu próprio corpo e com os outros. Por isso que na sua relação com os outros ela parece sempre ignorar o conteúdo perverso e obsceno presente na dominação sofrida e reproduzida. Esse conteúdo que constitui o aspecto de humilhação a que ela reduzida na sua relação com os outros no espaço social permanece fora dela; essa incapacidade de reconhecer como um objeto de humilhação, de identificar-se com a posição da vítima é visível no episódio em que ela recusa ser apanhada na identificação com uma classe social. O encontro com o livro “Humilhados e ofendidos” de Dostoiévski deixado sobre a mesa do seu chefe Seu Raimundo não gera a apreensão de sua condição social. Por mais que ela seja humilhada e ofendida – jamais recebeu presentes, telefonemas, não é ninguém para ninguém – ela não consegue se definir sob o título de humilhados e ofendidos, sua posição social não é assim identificada. Por um lado, isso impede toda possibilidade de luta social, de embate contra as forças que a aprisionam nessa condição. Mas, por outro, essa ausência de uma localização precisa gera o efeito estranho de uma falta que não se deixa incorporar, um fora-do-simbólico que a torna um objeto inquietante para os outros. Ela não se encaixa nas concepções compartilhadas sobre o comportamento das pessoas, escapa, de certa forma, à rede das normas e injunções simbólicas.
Talvez seja essa a verdade presente na história relatada pelo narrador(a), em que Macabéa força sua existência do interior do seu ventre, como um alien, um objeto estranho que fascina e que ao mesmo tempo não pode ser inteiramente descrito. Esse relato consiste na narrativa de um homem jovem que pretende atravessar um rio. Na margem desse rio ele se depara com um homem velho que tem medo de entra na água e passar para a margem oposta. O velho, então, aproveita para pedir ao jovem que o ajude a atravessar, talvez acentuando os traços cansados, moribundos e aterrorizados de sua pessoa. O jovem cede aos apelos do velho, concede a travessia sobre os seus ombros vigorosos caindo na armadilha preparada pelo homem idoso. O jovem coloca o velho sobre os seus ombros e o carrega até a margem oposta. No entanto, quando eles chegam ao outro lado, o velho responde de maneira cínica e obscena ao pedido do jovem para que ele desça de suas costas: “Ah, essa não! É tão bom estar aqui montado como estou que nunca mais vou sair de você!”. E aqui podemos imaginar a figura bizarra desse velho montado sobre as costas do jovem, ambos perambulando por aí, o jovem abalado em seu vigor por anos de subjugação. Devemos imaginar mesmo o velho morrendo sobre seus ombros depois de alguns anos, e o jovem, curvado sob o seu peso, continuando a carregá-lo na medida em que desconhece que ele está morto.
A resposta dada pelo velho ao jovem é a mesma que a lei socialmente veiculada nos transmite secretamente – essa entidade impessoal e cínica que nos coloniza sugando nossa energia vital, obrigando-nos a cumpri-la através do fluxo caótico e absurdo da vida. Ela exige que nos curvemos sob seu peso, constituindo-nos sob o seu império heterônomo, conformando-nos segundo a lógica que lhe é própria. O paradoxo da Lei simbólica é que ela é essa entidade morta, supra-sensível, que se inscreve em nosso corpo vivo e particular, inserindo-nos na vida social. Contudo, ela viva de nossa vida ao mesmo tempo que exige que cumpramos um imperativo sem conteúdo: “Não mate”, mas “quem” eu não devo matar? Ao ponto que essa pergunta se torne hiperbólica de modo que passamos a nos sentir culpados por um crime que não cometemos. Do mesmo modo que Freud explica que quanto mais nos esforçamos por cumprir as injunções superegóicas, mais nos sentimos pressionados e culpados. Contudo, o mal-estar da modernidade advém não do cumprimento de uma proibição, mas de um investimento sobre o sujeito: “Goza o máximo possível tua vida”.
Teríamos duas respostas alternativas e reações diferentes para essa situação. A primeira, seria a de negar o pedido, permanecer ali parado ao seu lado atém que ele em um ato desesperado se jogasse no rio tentando atravessá-lo sozinho; a segunda, talvez mais radical, seria a de aceitar o pedido e, quando estivessem a meio caminho da margem oposta, afogar-se junto com o velho. Macabéa, entretanto, é essa jovem que aceita deixar com que ela em seus ombros, um ato que é muito mais o gesto impotente diante do fascínio e alienação diante da demanda obscena do velho. Macabéa carrega asceticamente, de maneira resignada, o estado social que o indivíduo experimenta como hostil, alheio, frio e opressor.
Com certeza esse velho e seu pedido não condizem mais com a atual situação do capitalismo. Sua injunção é ainda mais obscena, cínica e explícita: goza a travessia o máximo possível, deixa-se perder no fluxo constante de prazeres que o mercado coloca a tua disposição.
Claro que essa interpretação se complica quando acrescentamos que esse velho determinado, pelo narrador(a), como sendo a própria Macabéa, enquanto o narrador se identifica com o jovem que leva sobre seus ombros o velho-Macabéa. Contudo, aqui a metáfora se desloca e diz respeito ao estatuto de Coisa inominável de Macabéa, o objeto que incomoda e obceca, ao mesmo tempo, o sujeito e que com relação a qual a narrativa sempre diz menos, nunca a atinge completamente.
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A presença física, a irrupção de seu corpo em cena é algo que incomoda profundamente Macabéa. O narrador(a) nos confessa que ela era moça que havia se visto nua diante do espelho, pois carregava consigo essa intensa vergonha de seu corpo. O corpo da personagem era constantemente ocultado, vestido, mortificado. Nesse ponto, o narrador(a) interroga: “Vergonha por pudor ou por ser feia?”. Talvez a escolha entre uma dessas opções não seja correta, pois o pudor por ser feia já é a conseqüência de sua vergonha. É possível que o segredo de sua vergonha esteja escondido em outro lugar. Ela advém muito mais da presença do que há de incontrolável em seu corpo, daquilo que o discurso moral repressor de sua tia não é capaz de assimilar, se deixar resgatar pelo sentido. Isso explica a relação traumática e pudica com relação ao funcionamento de seu corpo: quando encontra um moço muito bonito em um botequim, ela, ao imaginar o almoço em sua casa com ele, sente vergonha em comer na sua frente; o seu frequente enjoo para comer, o horror diante de palavrões, a sujeira de suas unhas, etc. Ao mesmo tempo que esse discurso faz ver, enquadra o excesso desarticulador e incômodo de seu corpo, ele funda-se precisamente nisso que ele exclui: o discurso constrói-se em torno de um corpo barrado, inacessível, perturbador e por isso ele perturba, permanece envolto pelo silêncio. No entanto, ao se manter do lado de fora do simbólico, ele é aquilo que não pode ser bem manejado, sua intrusão desarticuladora é sempre encarada como o Mal.
Dessa maneira, a vergonha de Macabéa tem sua origem na nudez de um corpo tornado estranho aos seus próprios olhos, impossível de ser tolerado do lugar do Outro que ela assume no seu olhar e que se regozija diante do tornar feio, da sujeira e repressão provocados nesse corpo. A imagem que ela vê do seu corpo despido diante do espelho é o lugar imaginário em que se encontra o Outro que instaura esse corpo no discurso moralista de repressão dos afetos corporais. Essa vergonha não diz respeito à vergonha do feio, do corpo magro e pauperizado exposto diante do espelho, mas o sinal visível do funcionamento da ideologia que opera por trás da conformação desse corpo raquítico ao ideal imaginário fundado no discurso religioso de sua tia.
Certamente isso é o inverso da ideologia dominante atual e que pode ser constatada por qualquer um que circule pelas academias de musculação. Quando o indivíduo musculoso olha para o seu corpo – corpo esse que exige horas de trabalho e investimento sobre ele – deleita-se com a imagem desse corpo coisificado, ele também assume a posição do Outro imaginário que sustenta essa fantasia de um corpo desejante, fonte inesgotável de prazer. Trata-se de um corpo-mercadoria que assume o espectro fantasmático e abstrato de uma coisa objetiva, algo exterior e que tem vida própria, podendo, assim, entrar na relação de troca com outros corpos. A relação entre essas pessoas transforma-se em uma relação entre coisas mediadas por um fantasma construído socialmente, instaurado pela injunção normativa de gozar o próprio corpo.
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Macabéa é o exemplo do sujeito desterrado, órfão e sem mundo que parece caracterizar a todos nós cada vez mais. Adolescente de 19 anos, moradora em um cortiço, dividindo o quarto com outras quatro mulheres trabalhadoras, ela é a imigrante forçada a deixar suas raízes, sua terra natal em Alagoas, jogada em um mundo hostil, alheio e violento que constitui os grandes centros financeiros como é o Rio de Janeiro. O narrador(a) se refere a ela da seguinte maneira: “Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia a filha de não-sei-o-quê com ar de se desculpar por ocupar o espaço... Ninguém olhava para ela na rua, ela era café frio”. Macabéia é aquela que não pode ocupar nenhum lugar na estrutura social, o que explica seu caráter de invisibilidade diante dos outros, seu comportamento desajeitado e incomum. Ela é alguém isolada, estranha a si mesma, ocupando um espaço coisificado fora da consciência (“...só vagamente tomava conhecimento da espécie de ausência que tinha de si em si mesma. Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim.”). O narrador(a) passa a ser esse suplemento de sua consciência, a instância que dá uma forma à sua substância exteriorizada, que diz o que permanece silenciado em sua vida cotidiana. O narrador(a) dá significado a sua vida, coleta os cacos e restos de sua história, pois falta a linguagem a Macabéa, a capacidade de se exprimir, de resgatar a sua subjetividade deslocada em uma narrativa q estabeleça as coordenadas de um espaço, os limites que conferem a determinação de um mundo onde ela possa se deslocar, estabelecer um envolvimento significativo. Ela está fora da ordem simbólica, pois é filha de ninguém, órfã que não é reconhecida nem pode se reconhecer no outro; ela parece ser a própria presença inquietante do nada. A substância que a define está situada do lado de fora, é exterior a si mesma, adquirindo uma frágil existência através da voz quase-morta desse narrador(a) que faz as vezes de sua consciência. Por ser desprovida de um mundo ela está, igualmente, privada do sentido, lançada no abandono e desamparo radicais. Por isso é tão difícil assinalar uma identidade, um lugar e um mandato simbólico a partir do qual se possa defini-la, captá-la em sua substância. Na verdade, sua essência está perdida, confunde-se com seus objetos de desejo: coca-cola, cachorro-quente, rádio, recortes publicitários – ela é uma coisa entre coisas. Por isso, o que temos diante de nós é a presença de um ego fragilizado, justamente por lhe faltar esse outro necessário que instaura os vínculos sociais. Ela escapa da loucura, o acesso direto ao real traumático, unicamente por que lhe resta o espaço da fantasia que investe sobre alguns objetos da vida cotidiana: a fantasia é o que lhe resta, espaço em que ela pode articular sua vida.
Se a fantasia é aquilo que o sujeito acredita sem saber nada disso, ela somente pode crer sem lacuna possível com algum tipo de desconhecimento: só pode assumir a postura passível de acreditar em tudo quanto os outros lhe dizem, usando as máscaras criadas pelos outros personagens com os quais interage. Nesse sentido, é sintomático o episódio em que ela diz ser feliz unicamente por ter ouvido que assim deveria ser – assumindo a felicidade como um significante vazio, desprovido de qualquer conteúdo; ou simulando as mentiras que Glória, sua colega de repartição, conta para seu chefe de modo a escapar do trabalho e poder ficar em casa, aproveitando sua solidão. O caráter parasitário de Macabéa é patente, a sua impotência e passividade são sinais mais visíveis.
Por outro lado, essa ausência de si em si mesma a torna um objeto estranho e monstruoso. Suas colegas de quarto não sabem como fazer com que ela se dê conta do seu cheiro insuportável que as incomoda; seu chefe é surpreendido por sua extrema passividade diante de suas explosões de raiva em virtude de sua incompetência na datilografia; Glória é tomada de inquietação quando se depara com sua inércia, sua incapacidade de reagir, de demonstrar um comportamento adequado, de se enquadrar bem na fantasia dos homens; seu namorado, Olímpico, se exaspera diante do silêncio e da incomunicabilidade de Macabéa, sua incapacidade de estabelecer um diálogo dotado de sentido, de falar de si. O silêncio renitente de Macabéa, as coisas sem sentido aparente que ela diz, acuam Olímpico que não sabe como reagir, alcançar o que quer, sendo destituído de sua masculinidade, a virilidade que insiste em expor e reforçar diante dela. O próprio médico que a examina em consulta aconselhada por Glória não sabe como enquadrá-la nas normas da medicina padrão, explodindo em fúria diante de sua incompreensão. Mesmo a cartomante não sabe muito bem como lidar com ela, inquieta pelo brilho de sua ausência.
Aliás, um traço visível da personagem Macabéa é a sua posição silenciosa. Trata-se de um ser a quem falta a linguagem, alguém que não acedeu completamente ao domínio simbólico, ao mundo do sentido. Para o ser falante, aquele que sabe manejar a língua e dizer as coisas, a vida é dotada de sentido. Por isso a vida se coloca em perigo quando o sentido é despedaçado. Por outro lado, esse perigo torna visível a lacuna de onde o sentido se origina: a perda do sentido apenas mostra o vazio constitutivo do sujeito que ele fracassa em dizer, fracasso que é, justamente, sua condição de possibilidade. É porque dizer sempre guarda um resto de não-dito, porque dizer é dizer não-tudo, que o sentido pode ser comunicado.
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A peça montada pelo grupo Válvula de Escape procura dar forma e vida ao texto de Clarice Lispector, tornar presente ao público essa personagem singular que ecoa o nada, em que brilha a mais pura ausência. Por isso o título da peça é bastante sugestivo: um sopro vindo de lugar nenhum, ressoando a voz não-morta da própria escuridão que constitui o sujeito.
Em todas as cenas Macabéa parece estar ausente a despeito do fato dela ser protagonista da história. Ela parece ser o núcleo inominável, a substância volátil que escapa da teia narrativa armada para dizê-la: há algo nela que surpreende as palavras que recuam diante de sua espectralidade. Ela é a própria figura da ausência, pois somente ela não pode ser situada narrativamente, apanhada em uma identidade. Isso é visível no seu apego ao significante vazio, esvaziado de significado, que é a palavra efeméride, que ela apaixonadamente copia, datilografando letra por letra em sua máquina de escrever. Ela sequer desconfia de seu significado que se confunde com a sua própria vida: algo de efêmero, frágil e invisível.
A partir de sexta-feira deixaremos que a peça permita que o espectador entre nessa história e possa também se descentrar de seu lugar seguro, percorrer junto com Macabéa os espaços sombrios e escuros de seu interior esvaziado.
André Susin - Ator, Músico e Assessoria Filosófica do Grupo Válvula de Escape - Mestre em Filosofia pelo PPGF/UFRGS e Graduação em Filosofia na UNISINOS.
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