sábado, 4 de fevereiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: JORGE ANDRADE Parte 1


Jorge Andrade - 1922 - 1984
No tempo em que os críticos procuravam descobrir qual seria a “faculdade mestra” de um escritor, talvez dissessem que a de Jor­ge Andrade é a tensão, a crispação apaixonada com que afronta os problemas. num universo dramático onde o humor e a leveza mal se mostram. Pondo entre parênteses Os ossos do Barão, o que fica é de fato um mundo de intensa gravidade, construído por um autor que transforma a cada instante o relato em testemunho e a cena em conflito. Para Jorge Andrade as coisas têm um grande peso, que dá a cada gesto o timbre dos momentos decisivos.
Daí os temas obsedantes que recorrem no seu teatro e caracte­rizam os seus diferentes produtos. Sobretudo a terra e a família, marcados pela dimensão do passado. Já foi dito que ele é o primei­ro grande escritor do mundo rural paulista, isto é, da decadência das classes rurais dominantes, correspondendo ao arcabouço temático do romance brasileiro dos anos 30 e 40. A sua obra nasce das relações de avós, tios, primos: nasce do fato de alguém ser parente de alguém, num universo onde o parentesco define o lugar no espa­ço da sociedade. Mas o espaço da sociedade pressupõe um espaço físico, que aqui é a terra, como posse e como finalidade da vida. “Os bens e o sangue”, — eis uma epígrafe possível para o seu teatro, que, não cronológica, mas logicamente, começaria com O sumidou­ro, numa etapa quase mítica, para encontrar um marco real em Pe­dreira das almas, onde se propõe a história de uma família fazendei­ra de Minas, que vem para São Paulo buscar terras férteis e liberda­de de agir, pela altura de 1842. A moratória mostra o momento da queda, quase um século depois, e as outras variam, cada uma a seu modo, sobre o tema ostensivo ou implícito da perda do paraíso paternalista e rural, até o confinamento de A escada — quando as gle­bas de cultura e os campos de caça se evaporam e se transpõem no confinamento de um modesto prédio de apartamentos.
Mundo de donos da terra e seus descendentes, amargurados pela mudança de vida. Mundo até certo ponto senhorial, descrito às vezes com uma amplificação de tom que faz pensar em sentimento de classe dominante. Mas, se passou por aí, a obra de Jorge Andra­de não ficou aí. Mostrou que, por cima da aparente visão de classe, tencionava penetrar com maior amplitude na vida de todos os ho­mens. Aquela casta de fazendeiros era um mundo, não o mundo, Os seus dramas podiam ser pungentes e tocar a todos nós, mas não re­sumiam os trabalhos do homem.
    Por isso, no meio do painel senhorial veio se engastar  Vereda da salvação, ou seja, o mundo dos senhores visto pelo avesso, pelo lado dos trabalhadores miseráveis que, não encontrando saída na iniqüidade do sistema da terra, procuram uma abertura para o sis­tema do céu. Esta peça patética e forte, ao mesmo tempo que com­pleta, desvenda a intenção de testemunhar sobre o homem: é uma contraprova que inverte a perspectiva, passando da casa de fazenda para a casa de colono. Como Moleque Ricardo no ciclo de José Lins do Rego, ela amplia o panorama, acrescentando ao rico o pobre, ao dominador o dominado.
Pareceu então que Jorge Andrade encerrara a necessidade de falar sobre o mundo, por esgotamento do que tinha para dizer, a partir da experiência de um certo mundo. A edição do seu teatro completo como que materializou um estado de ânimo desse tipo, ao enfeixar num só volume tudo quanto tinha escrito até então, e que pôde organizar com tal coerência que a sua produção ficou pare­cendo rigorosamente programada. Programação apenas em parte consciente, regida por uma misteriosa ordem das profundidades, que denotava o peso das obsessões ligadas ao seu universo de ori­gem.
A seguir, ele passou pela experiência nem sempre feliz da tele­novela. Numa primeira peça, recozendo as fases mais pitorescas de suas crônicas da decadência: depois, tentando, com  O grito, mudar de craveira e temário. Foi quando abordou o homem da selva urba­na e os atalhos do dia-a-dia no nosso tempo de cidade grande. Tal­vez o resultado não tenha sido perfeito; mas para o escritor, foi fundamental. Quem acompanhava a sua carreira sentiu logo que ele es­tava, ao seu modo, liquidando uma fixação e tentando confusamen­te definir outra, O resultado só veio aparecer aqui, nesta peça admi­rável sob qualquer aspecto que é Milagre na cela, onde o grito da te­lenovela desigual aparece de outro modo e dá forma a um jeito re­novado de encarar as coisas. O passado está arquivado e Jorge Andrade, refeito por ele mesmo, se instala pela primeira vez no presen­te puro, para ver o nosso mundo sob alguns dos seus aspectos mais cruciantes.

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