domingo, 5 de fevereiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: JORGE ANDRADE Parte 2

O grande personagem desta peça ( Milagre na cela) talvez não seja nenhum dos figurantes, apesar da sua grande força: mas a tortura, abordada pela primeira vez entre nós como um fato com o qual é preciso con­viver.
Tendo sido durante quase toda a história do homem um proce­dimento policial e judiciário normal, ela acabou formalmente pros­crita no século XVIII. Mas essa proeza da filosofia ilustrada parece esbarrar com tendências profundas da nossa animalidade, que a trouxeram de volta oficiosamente e quase em triunfo nos dias que correm. É horrível o fato de ela ser admitida e organizada, porque, isso posto. pode surgir, de todos e de cada um, o torturador torna­do necessário. Laudisi diante do espelho, em Cosí è (se vi pare),  de Pirandello: “io dico: “tu”, e tu col dito indichi me”. Pode haver um torturador onde menos se espera; reciprocamente. em cada um de­les pode restar alguma coisa de humanidade melhor, que também há em todos. A peça de Jorge Andrade é retrato de época e denún­cia do mal; mas também estudo do homem. Não há monstros e an­jos. Há homens e mulheres colhidos na rede do mal, organizado e imposto conscientemente, vivendo as suas vidas através das malhas. O agente da brutalidade se degrada ao degradar a vitima. Este é o preço mínimo. Mas dentro do esquema podem surgir as mais ines­peradas complicações.  
Aqui, uma freira é presa e acusada de ser subversiva, porque é realmente humana. Vilipendiada. machucada, resiste. Um policial afeito ao exercício da brutalidade leva uma dupla vida: em casa, pai e marido perfeito: no serviço, usuário da violência como forma de dever, que acaba modalidade de auto-realização e de prazer. Con­forme os usos, ele resolve  ‘‘fazer confessar’’ à freira o que ela obvia­mente não fez: ou seja, obrigá-la a reconhecer que o que fez não é o que quis fazer, mas aquilo que a Autoridade quer que signifique o que ela fez. A certa altura, ameaça violentá-la com um pedaço de madeira. É nessa cena culminante, que decide todo o significado da peça, a freira lhe diz para usar o membro que Deus lhe deu para esse fim.
Bravata ou repto? Repto admirável, porque na verdade o que ela está provocando é a supressão dos elementos intermediários, para liberar o contacto direto entre dois seres. Está obrigando o po­licial a ser pelo menos um monstro humano, não um monstro mecânico.   A conseqüência é que o ato brutal (mas apesar de tudo, natural na sua desnaturalidade) aproxima os dois seres, torturador e tortu­rado. O carrasco se apaixona pela vítima: a vítima descobre por meio da violência carnal uma dimensão de experiência que não ti­nha vivido. Nesse processo, ela aumenta paradoxalmente a sua pró­pria humanidade e converte em parte o carrasco a uma conduta hu­mana, semeando perturbação nos seus desígnios de aniquilamento pela força. A entrada do relacionamento natural desfigura, portan­to, a inteireza da tortura, ao abalar o ânimo do torturador. Mas não suprime nem justifica o sistema da violência organizada. O epi­sódio se enquista à margem de um processo que continua.
Nunca, no Brasil, essa realidade sinistra dos nossos dias tinha encontrado expressão literária em nível tão alto; ou mesmo, assim concentrada, em qualquer nível. Mas a peça histórica e terrível de Jorge Andrade vai mais longe e mais largo, abrangendo um dos dramas maiores da nossa condição, que é a tendência para pôr o homem sob o arbítrio do homem. A História é em grande parte his­tória disso; dos esforços que os homens fazem para reduzir o seme­lhante ao seu dispor, ou para se livrarem deste estado. Costumamos considerar piores os regimes que criam possibilidades de arbítrio, de brutalidade sistemática de uns sobre outros. Costumamos consi­derar melhores os que as atenuam. E em qualquer regime, é bom lembrar que no fundo de cada homem há sempre a possibilidade do pior vir para fora e se espraiar, quando é solicitado pelos que o ma­nipulam como útil instrumento de domínio.
Narrando a formação de Roma, Salústio explica que a função de rei surgiu para manter a ordem e a liberdade, pois o rei executa­va a lei mas também a obedecia. No entanto, passando o tempo, a sua autoridade se transformou em “tirania insolente” e foi preciso mudar o regime, surgindo dois chefes eleitos cada ano (os cônsules). Com isso, comenta o historiador democrata, “esperava-se, limitan­do a autoridade, impedir a natureza humana de se tornar escrava do orgulho e da licença”. A conseqüência foi que “cada um começou a demonstrar melhor as suas qualidades pessoais e os recursos de seus talentos”.
Esta passagem exemplar da Conjuração de Catilina mostra como os Antigos conheciam bem o mecanismo da dominação. Se os chefes impõem a lei, mas também a seguem, há equilíbrio, os maus impulsos são contidos, porque o orgulho e o arbítrio (licença) não predominam: em conseqüência, reina um estado de coisas que permite a cada um tirar de si o melhor. Se a tirania se instala, tudo vira do avesso e, ao contrário do famoso verso de Baudelaire, do anjo entorpecido surge o bruto.
Essas coisas perpassam na peça de Jorge Andrade, em cujo subsolo se jogam os dramas da tirania e da liberdade, da domina­ção e da submissão e, para dizer tudo numa palavra, do humano e do desumano, estreitamente entrançados.
O leitor gostaria que o mundo descrito nela fosse incerto no tempo e no espaço, como o da “Colônia penal” de Kafka, e sua prodigiosa máquina de torturar. Que fosse apenas uma fábula. Mas o fato de descrever a realidade presente lhe dá maior gravidade e uma ressonância patética.

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