O grande personagem desta peça ( Milagre na cela) talvez não seja nenhum dos figurantes, apesar da sua grande força: mas a tortura, abordada pela primeira vez entre nós como um fato com o qual é preciso conviver.
Tendo sido durante quase toda a história do homem um procedimento policial e judiciário normal, ela acabou formalmente proscrita no século XVIII. Mas essa proeza da filosofia ilustrada parece esbarrar com tendências profundas da nossa animalidade, que a trouxeram de volta oficiosamente e quase em triunfo nos dias que correm. É horrível o fato de ela ser admitida e organizada, porque, isso posto. pode surgir, de todos e de cada um, o torturador tornado necessário. Laudisi diante do espelho, em Cosí è (se vi pare), de Pirandello: “io dico: “tu”, e tu col dito indichi me”. Pode haver um torturador onde menos se espera; reciprocamente. em cada um deles pode restar alguma coisa de humanidade melhor, que também há em todos. A peça de Jorge Andrade é retrato de época e denúncia do mal; mas também estudo do homem. Não há monstros e anjos. Há homens e mulheres colhidos na rede do mal, organizado e imposto conscientemente, vivendo as suas vidas através das malhas. O agente da brutalidade se degrada ao degradar a vitima. Este é o preço mínimo. Mas dentro do esquema podem surgir as mais inesperadas complicações.
Aqui, uma freira é presa e acusada de ser subversiva, porque é realmente humana. Vilipendiada. machucada, resiste. Um policial afeito ao exercício da brutalidade leva uma dupla vida: em casa, pai e marido perfeito: no serviço, usuário da violência como forma de dever, que acaba modalidade de auto-realização e de prazer. Conforme os usos, ele resolve ‘‘fazer confessar’’ à freira o que ela obviamente não fez: ou seja, obrigá-la a reconhecer que o que fez não é o que quis fazer, mas aquilo que a Autoridade quer que signifique o que ela fez. A certa altura, ameaça violentá-la com um pedaço de madeira. É nessa cena culminante, que decide todo o significado da peça, a freira lhe diz para usar o membro que Deus lhe deu para esse fim.
Bravata ou repto? Repto admirável, porque na verdade o que ela está provocando é a supressão dos elementos intermediários, para liberar o contacto direto entre dois seres. Está obrigando o policial a ser pelo menos um monstro humano, não um monstro mecânico. A conseqüência é que o ato brutal (mas apesar de tudo, natural na sua desnaturalidade) aproxima os dois seres, torturador e torturado. O carrasco se apaixona pela vítima: a vítima descobre por meio da violência carnal uma dimensão de experiência que não tinha vivido. Nesse processo, ela aumenta paradoxalmente a sua própria humanidade e converte em parte o carrasco a uma conduta humana, semeando perturbação nos seus desígnios de aniquilamento pela força. A entrada do relacionamento natural desfigura, portanto, a inteireza da tortura, ao abalar o ânimo do torturador. Mas não suprime nem justifica o sistema da violência organizada. O episódio se enquista à margem de um processo que continua.
Nunca, no Brasil, essa realidade sinistra dos nossos dias tinha encontrado expressão literária em nível tão alto; ou mesmo, assim concentrada, em qualquer nível. Mas a peça histórica e terrível de Jorge Andrade vai mais longe e mais largo, abrangendo um dos dramas maiores da nossa condição, que é a tendência para pôr o homem sob o arbítrio do homem. A História é em grande parte história disso; dos esforços que os homens fazem para reduzir o semelhante ao seu dispor, ou para se livrarem deste estado. Costumamos considerar piores os regimes que criam possibilidades de arbítrio, de brutalidade sistemática de uns sobre outros. Costumamos considerar melhores os que as atenuam. E em qualquer regime, é bom lembrar que no fundo de cada homem há sempre a possibilidade do pior vir para fora e se espraiar, quando é solicitado pelos que o manipulam como útil instrumento de domínio.
Narrando a formação de Roma, Salústio explica que a função de rei surgiu para manter a ordem e a liberdade, pois o rei executava a lei mas também a obedecia. No entanto, passando o tempo, a sua autoridade se transformou em “tirania insolente” e foi preciso mudar o regime, surgindo dois chefes eleitos cada ano (os cônsules). Com isso, comenta o historiador democrata, “esperava-se, limitando a autoridade, impedir a natureza humana de se tornar escrava do orgulho e da licença”. A conseqüência foi que “cada um começou a demonstrar melhor as suas qualidades pessoais e os recursos de seus talentos”.
Esta passagem exemplar da Conjuração de Catilina mostra como os Antigos conheciam bem o mecanismo da dominação. Se os chefes impõem a lei, mas também a seguem, há equilíbrio, os maus impulsos são contidos, porque o orgulho e o arbítrio (licença) não predominam: em conseqüência, reina um estado de coisas que permite a cada um tirar de si o melhor. Se a tirania se instala, tudo vira do avesso e, ao contrário do famoso verso de Baudelaire, do anjo entorpecido surge o bruto.
Essas coisas perpassam na peça de Jorge Andrade, em cujo subsolo se jogam os dramas da tirania e da liberdade, da dominação e da submissão e, para dizer tudo numa palavra, do humano e do desumano, estreitamente entrançados.
O leitor gostaria que o mundo descrito nela fosse incerto no tempo e no espaço, como o da “Colônia penal” de Kafka, e sua prodigiosa máquina de torturar. Que fosse apenas uma fábula. Mas o fato de descrever a realidade presente lhe dá maior gravidade e uma ressonância patética.
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