quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

PERSPECTIVAS SOBRE A DRAMATURGIA DE "CONVERSAS DE BOTAS BATIDAS"



Ao ter optado pelo grande desafio de direcionar a pesquisa para uma adaptação intertextual do universo do teatro do absurdo, nossa proposta prevê uma aprofundada pesquisa acerca dos autores considerados absurdistas e a partir dai tentar formatar uma nova dramaturgia partindo destes referenciais. 
A dinâmica do nosso processo se estabelece através da leitura dos textos de autores como: Samuel Beckett, Fernando Arrabal, Eugene Ionesco, Harold Pinter e Lewis Carrol. Em cada texto procuramos encontrar a ideia, o núcleo que irá desencadear todo o universo criativo do novo texto. O texto original torna-se apenas um suporte criativo para a nova montagem. Neste contexto, são bastante esclarecedoras as palavras de Roubine ao comentar a grande contribuição que André Antoine faz ao rejeitar a ortodoxia em matéria de encenação e defender 
"o direito do encenador de sustentar um discurso diferente daquele da    celebração da obra-prima. A direção não é mais (ou não é mais apenas) a arte de fazer com que um texto admirável emita coloridos reflexos, como uma pedra preciosa; mas é a arte de colocar esse texto numa determinada perspectiva; dizer a respeito dele algo que ele não diz; pelo menos explicitamente, de expô-lo não mais apenas à admiração, mas também à reflexão do espectador..." (Roubine, p.p cit. 41)
   O texto de "Conversa de botas batidas" é apenas um dos aspectos analisados do processo criativo. Ele é uma recriação deste universo, sendo a confluência de muitos outros autores e influências diversificadas. a dinâmica do processo tem se instaurado assim: 
"pegamos a ideia central de "Esperando Godot" e elaboramos cenas completamente diferentes, com diálogos que nada tem a ver com os inventados por Beckett", e assim seguimos com os textos de Arrabal, Ionesco, Pinter entre outros. 
Mas aí chegamosa primeira questão: Porque utilizar os textos destes autores consagrados, se não queremos fazer o que eles estão nos propondo? 
Não queremos a forma estabelecida por eles, mas o conteúdo. O que nos interessa é o que estes autores estão nos dizendo através dos seus textos, desconstruímos a forma mas mantivemos o cerne textual, recriando seus diálogos e tentando encontrar uma articulação eficaz que discorra sobre o que nós estamos querendo falar através destes autores. 
Estamos traindo Beckett/Arrabal/Ionesco/Pinter? Lógico que sim! Estamos! Toda a adaptação não deixa de ser uma traição, mas é evidente que ao tentar transpor para o palco este universo, revelamos uma concepção ideológica e dramatúrgica completamente diferente dos dramaturgos utilizados como base, pelo menos, se considerarmos esta afirmação como pressuposto geral. Entretanto se colocarmos as peças lado a lado (a dos autores pesquisados X o nosso roteiro), percebemos que tudo é, ao mesmo tempo, muito semelhante e muito diferente: é uma semelhança com diferença critica. Tem-se a impressão que é Beckett (e é), que é Arrabal (e é), pois grande parte dos episódios está lá, que a critica social se repete, que os personagens revelam a mesma motivação interna. Todavia o enfoque é outro. A radicalização é potencializada através da intertextualidade, o confronto entre discursos fragmentados de textos e seus autores, ou seja, um grande mosaico textual. Este trabalho se torna mais estimulante e desafiador, pois qualquer informação torna-se uma pista, qualquer referencia (incluindo as rubricas) são valiosas contribuições.
É como um quebra-cabeça, um jogo de encaixe, onde as peças vão se juntando e levantando o corpo desconhecido, inusitado, repleto de descobertas. É no rastro desta conduta intertextual e com o desejo de deparar-se com substanciais resultados criativos e gratas surpresas que encaramos o nosso processo.
Grupo Válvula de Escape
Referencias:
ROUBINE, Jean Jacques. A arte de Ator. 

segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: ARISTÓFANES



Aristófanes, o mais famoso comediógrafo da Antigüidade grega e até hoje apreciado por leitores e espectadores incontáveis, nasceu em Atenas apro­ximadamente em 455 a.C., e lá morreu em torno de 375 a.C. Das 44 comédias por ele escritas chegaram até nossos dias 11: Os acarnenses, estreada em 425 a.C.; Os cavaleiros (424); As Nuvens (423); As vespas (422); A paz (421); Os pássaros (414); A greve do sexo (ou Lisístrata, 411); Só para mulheres ; As rãs (405); A revo­lução das mulheres (ou Eclesiazusas, 392) e Um deus chamado dinheiro (ou Pluto, 388).
Na época de Aristófanes a comédia correspondia de certo modo à imprensa, e nela eram criticadas as instituições, os políticos de um modo geral e principalmente os corruptos, os abusos de autoridade, as peças de teatro etc. A linguagem da comédia era desabrida e contundente, muito diferente da tragédia, à exceção do lirismo de alguns coros encantadores. Havia comunicação direta entre o autor e os espectadores, por meio do corifeu, que se dirigia à platéia em nome do autor na parábase (à exceção das últimas peças que, devido aos governos discricionários impostos após a derrota dos atenienses pelo espartanos, não tinham essa parte).

AS COMÉDIAS TRADUZIDAS

1 — As Nuvens. Strepsiades, um fazendeiro idoso, estava sendo arrui­nado por sua mulher, de família rica, e por seu filho Fidipides, fanático por carros e cavalos. Strepsiades ouviu falar em Sócrates, um filósofo que por seus sofismas era capaz de fazer a causa pior parecer a melhor, e ficou esperançoso de poder enganar seus credores valendo-se dos ensinamentos socráticos. Em face da recusa de seu filho de entrar para a escola de Sócrates (o “Pensatório”, ou ‘Oficina de Pensamento”), Strepsiades toma a decisão de ele próprio freqüentá-la. Lá, é apresentado por Sócrates às Nuvens, as verdadeiras divindades causadoras dos trovões e das chuvas (e não Zeus, o deus maior dos gregos, como se supunha). Strepsiades, todavia, de tão simplório e preocupado com suas dívidas, nada consegue aprender. e Fidipides toma o seu lugar de aluno. Sócrates entrega Fidipides ao Raciocínio Justo e ao Raciocínio Injusto para receber lições diretamente deles. Há um debate entre os dois Raciocínios, no qual o vencedor é o Raciocínio Injusto. Com a ajuda das lições recebidas por Fidipides, Strep­siades consegue livrar-se de seus credores. Mas a situação vira-se contra ele quando, valendo-se das mesmas lições, Fidipides passa a espancar o pai e prova que, agindo assim, está fazendo apenas justiça. Desgostoso com a situação, Strepsiades incendeia o Pensatório, para desespero dos demais discípulos de Sócrates.
Muito provavelmente esta comédia de Aristófanes influiu no julgamen­to de Sócrates e em sua condenação à morte.

2 — Só para mulheres. As mulheres de Atenas estão preparadas para celebrar sua festa — as Tesmoforias —, da qual os homens não podiam participar. Eurípides foi informado de que as mulheres, enfurecidas com as reiteradas acusações em suas peças sobre o caráter e a maldade do sexo feminino, estavam tramando sua morte. Ele tenta convencer Agaton, um tragediógrafo efeminado, a participar da festa vestido de mulher e defender sua causa. Agaton recusa-se e diante disso Mnesfioco, sogro de Eurípides, oferece-se corajosamente a ir em seu lugar. Devidamente barbeado, depi­lado e vestido de mulher, Mnesíloco dirige-se à festa das mulheres. Ou­vem-se discursos inflamados contra Eurípides; Mnesíloco toma sua defe­sa, mencionando o número ainda maior de coisas que o poeta trágico poderia ter dito sobre as mulheres sem faltar à verdade. A indignação geral causada pela fala de Mnesíloco é interrompida pela chegada de notícias de que um homem havia penetrado na festa disfarçado de mulher. Reali­za-se um interrogatório e Mnesíloco é descoberto e preso. Imitando o herói de uma das peças de Eurípides, Minesfloco escreve uma mensagem em quadros votivos do templo e a lança ao ar. Ele passa a representar o papel de Helena, e Eurípides, que chegava para ajudá-lo, aparece como Menelau. Há uma cena de reconhecimento no estilo das de Eurípides em suas tragédias, mas uma mulher da guarda impede o encontro dos dois. Um policial chega em seguida e agrilhoa Mnesíloco. Eurípides passa a falar como se fosse Perseu, e Mnesíloco fala como se fosse Andrômeda numa tragédia de Eurípides, acorrentada a uma rocha, mas o policial evita a tentativa de ajuda. Afinal, Eurípides propõe condições às mulheres para uma reconciliação: ele nunca mais falará mal delas se libertarem seu sogro. As mulheres concordam, porém resta convencer o soldado que detinha Mnesíloco. Essa tentativa é bem-sucedida graças a uma bonita dançarina, que atrai o soldado para longe de seu posto, tornando possível a fuga de Mnesíloco.

3 — Um deus chamado dinheiro. Crêmilo está de tal maneira indignado ao ver ricos desonestos por todos os lados, enquanto ele mesmo é honesto e pobre, que consulta o oráculo de Apolo para saber se deveria ou não educar seu filho como um trapaceiro. O deus aconselha-o a seguir a primeira pessoa que encontre ao deixar o santuário e levá-la para ir morar com ele em sua casa. Essa pessoa é um velho cego que, sob pressão de ameaças, revela sua identidade: trata-se de Pluto, o deus da riqueza, que Zeus cegara por estar desgostoso com os homens. Crêmilo decide obter a cura da cegueira de Pluto, de tal maneira que ele possa evitar as pessoas más e enriquecer apenas as virtuosas. Pluto teme a vingança de Zeus, porém convence-se logo de que é realmente mais poderoso que o próprio Zeus, e deixa-se levar até o templo de Asclépio, deus-médico, para ser curado. A Pobreza intervém e tenta convencer Crêmilo a desistir de sua idéia, alertando-o para as conseqüências desastrosas de sua decisão, pois a pobreza é a fonte de todas as virtudes e a força motriz de todo esforço humano e causa da grandeza da Hélade. Mas Crêmilo não se deixa per­suadir. A sessão de cura no templo de Asclépio é descrita hilariantemente e Pluto, já com a visão recuperada, volta à casa de Crêmilo, que agora ficara rico. Chegam em seguida numerosos visitantes: um homem honesto, que fora pobre durante muito tempo e agora está próspero, desejoso de consagrar ao deus seu manto e suas sandálias velhas e estragadas; um sicofante, indignado por estar reduzido à ruma; uma velha, abandonada pelo gigolô que antes a adulava para explorá-la; o deus Hermes, que agora nada obtém no céu para comer e procura emprego na terra; e finalmente o próprio sacerdote de Zeus, também na iminência de morrer de fome.
Esta comédia foi a última de Aristófanes, o “enfant terrible” das Musas, e já se aproxima das características da Comédia Intermediária. 
Muitos contemporâneos de Aristófanes não lhe deram o devido valor, pois só lhe concederam a palma da vitória nos concursos oficiais de comédias em três de suas peças conservadas: Os acarnenses, Os cavaleiros e As rãs.
Um deles, porém (talvez o mais ilustre), prestou-lhe uma homenagem consagradora, que os leitores e espectadores de suas obras vêm reiterando há quase dois milênios e meio. Platão. o mais famoso ateniense da época, dedicou-lhe um epigrama que chegou até nós:
“As Graças procuravam um altar perene;
acharam-no na inteligência de Aristófanes.”
(Antologia grega, edição de Cougny, vol. III, p. 293, Paris, reimpressão de 1927)
Além de seu grande valor intrínseco, as comédias de Aristófanes são a fonte mais autêntica para a reconstrução dos detalhes da vida cotidiana em Atenas na época clássica.
Reproduzimos na tradução a linguagem forte do original, característica da Comédia Antiga, sem contribuir com qualquer acréscimo nosso.
Para As Nuvens seguimos principalmente o texto da edição anotada de
W. J. M. Starkie (reimpressão de 1966, Amsterdam, Adolph M. Hakkert).
Para as demais comédias valemo-nos geralmente do texto da edição de
Victor Coulon (Paris, ‘Les Befles Letras”, 2ª edição, 1934).

Rio, janeiro de 1995

Mário da Gama Kury

domingo, 12 de fevereiro de 2012

CAMPANHA: DOE UMA MALA


O grupo Válvula de Escape está iniciando mais um processo criativo, desde o final de 2011 estamos mergulhados na pesquisa do espetáculo "Conversa de botas batidas", um mergulho no universo do teatro do absurdo. Com o inicio do nosso trabalho prático estamos precisando de malas, de qualquer tamanho, cor ou formato. Não importa se a mala for velha ou antiga (até preferimos assim). Se alguém tiver uma mala e quiser nos apoiar, entre em contato conosco que buscamos em sua casa. Se puder compartilhar com seus amigos, agradecemos. 
Nossos contatos: e-mail: escapeteatro@bol.com.br  - fone: (51) 8177.4446 - Montenegro (RS)

sábado, 11 de fevereiro de 2012

SEMANA DE ARTE MODERNA 1922 - 2012

OS SAPOS

Enfunando os papos,
Saem da penumbra,
Aos pulos, os sapos.
A luz os deslumbra.
Em ronco que aterra,
Berra o sapo-boi:
– "Meu pai foi à guerra!"
– "Não foi!"– "Foi!"– "Não foi!".
O sapo-tanoeiro,
Parnasiano aguado,
Diz: – "Meu cancioneiro
É bem martelado.
Vede como primo
Em comer os hiatos!
Que arte! E nunca rimo
Os termos cognatos.
O meu verso é bom
Frumento sem joio.
Faço rimas com
Consoantes de apoio.
Vai por cinqüenta anos
Que lhes dei a norma:
Reduzi sem danos
A formas a forma.
Clame a saparia
Em críticas céticas:
Não há mais poesia,
Mas há artes poéticas..."
Urra o sapo-boi:
– "Meu pai foi rei!" – "Foi!"
– "Não foi!"– "Foi!"– "Não foi!".
Brada em um assomo
O sapo-tanoeiro:
– "A grande arte é como
Lavor de joalheiro.
Ou bem de estatuário.
Tudo quanto é belo,
Tudo quanto é vário,
Canta no martelo."
Outros, sapos-pipas
(Um mal em si cabe),
Falam pelas tripas:
– "Sei!"– "Não sabe!"– "Sabe!".
Longe dessa grita,
Lá onde mais densa
A noite infinita
Verte a sombra imensa;
Lá, fugido ao mundo,
Sem glória, sem fé,
No perau profundo
E solitário, é
Que soluças tu,
Transido de frio,
Sapo cururu
Da beira do rio...


domingo, 5 de fevereiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: JORGE ANDRADE Parte 2

O grande personagem desta peça ( Milagre na cela) talvez não seja nenhum dos figurantes, apesar da sua grande força: mas a tortura, abordada pela primeira vez entre nós como um fato com o qual é preciso con­viver.
Tendo sido durante quase toda a história do homem um proce­dimento policial e judiciário normal, ela acabou formalmente pros­crita no século XVIII. Mas essa proeza da filosofia ilustrada parece esbarrar com tendências profundas da nossa animalidade, que a trouxeram de volta oficiosamente e quase em triunfo nos dias que correm. É horrível o fato de ela ser admitida e organizada, porque, isso posto. pode surgir, de todos e de cada um, o torturador torna­do necessário. Laudisi diante do espelho, em Cosí è (se vi pare),  de Pirandello: “io dico: “tu”, e tu col dito indichi me”. Pode haver um torturador onde menos se espera; reciprocamente. em cada um de­les pode restar alguma coisa de humanidade melhor, que também há em todos. A peça de Jorge Andrade é retrato de época e denún­cia do mal; mas também estudo do homem. Não há monstros e an­jos. Há homens e mulheres colhidos na rede do mal, organizado e imposto conscientemente, vivendo as suas vidas através das malhas. O agente da brutalidade se degrada ao degradar a vitima. Este é o preço mínimo. Mas dentro do esquema podem surgir as mais ines­peradas complicações.  
Aqui, uma freira é presa e acusada de ser subversiva, porque é realmente humana. Vilipendiada. machucada, resiste. Um policial afeito ao exercício da brutalidade leva uma dupla vida: em casa, pai e marido perfeito: no serviço, usuário da violência como forma de dever, que acaba modalidade de auto-realização e de prazer. Con­forme os usos, ele resolve  ‘‘fazer confessar’’ à freira o que ela obvia­mente não fez: ou seja, obrigá-la a reconhecer que o que fez não é o que quis fazer, mas aquilo que a Autoridade quer que signifique o que ela fez. A certa altura, ameaça violentá-la com um pedaço de madeira. É nessa cena culminante, que decide todo o significado da peça, a freira lhe diz para usar o membro que Deus lhe deu para esse fim.
Bravata ou repto? Repto admirável, porque na verdade o que ela está provocando é a supressão dos elementos intermediários, para liberar o contacto direto entre dois seres. Está obrigando o po­licial a ser pelo menos um monstro humano, não um monstro mecânico.   A conseqüência é que o ato brutal (mas apesar de tudo, natural na sua desnaturalidade) aproxima os dois seres, torturador e tortu­rado. O carrasco se apaixona pela vítima: a vítima descobre por meio da violência carnal uma dimensão de experiência que não ti­nha vivido. Nesse processo, ela aumenta paradoxalmente a sua pró­pria humanidade e converte em parte o carrasco a uma conduta hu­mana, semeando perturbação nos seus desígnios de aniquilamento pela força. A entrada do relacionamento natural desfigura, portan­to, a inteireza da tortura, ao abalar o ânimo do torturador. Mas não suprime nem justifica o sistema da violência organizada. O epi­sódio se enquista à margem de um processo que continua.
Nunca, no Brasil, essa realidade sinistra dos nossos dias tinha encontrado expressão literária em nível tão alto; ou mesmo, assim concentrada, em qualquer nível. Mas a peça histórica e terrível de Jorge Andrade vai mais longe e mais largo, abrangendo um dos dramas maiores da nossa condição, que é a tendência para pôr o homem sob o arbítrio do homem. A História é em grande parte his­tória disso; dos esforços que os homens fazem para reduzir o seme­lhante ao seu dispor, ou para se livrarem deste estado. Costumamos considerar piores os regimes que criam possibilidades de arbítrio, de brutalidade sistemática de uns sobre outros. Costumamos consi­derar melhores os que as atenuam. E em qualquer regime, é bom lembrar que no fundo de cada homem há sempre a possibilidade do pior vir para fora e se espraiar, quando é solicitado pelos que o ma­nipulam como útil instrumento de domínio.
Narrando a formação de Roma, Salústio explica que a função de rei surgiu para manter a ordem e a liberdade, pois o rei executa­va a lei mas também a obedecia. No entanto, passando o tempo, a sua autoridade se transformou em “tirania insolente” e foi preciso mudar o regime, surgindo dois chefes eleitos cada ano (os cônsules). Com isso, comenta o historiador democrata, “esperava-se, limitan­do a autoridade, impedir a natureza humana de se tornar escrava do orgulho e da licença”. A conseqüência foi que “cada um começou a demonstrar melhor as suas qualidades pessoais e os recursos de seus talentos”.
Esta passagem exemplar da Conjuração de Catilina mostra como os Antigos conheciam bem o mecanismo da dominação. Se os chefes impõem a lei, mas também a seguem, há equilíbrio, os maus impulsos são contidos, porque o orgulho e o arbítrio (licença) não predominam: em conseqüência, reina um estado de coisas que permite a cada um tirar de si o melhor. Se a tirania se instala, tudo vira do avesso e, ao contrário do famoso verso de Baudelaire, do anjo entorpecido surge o bruto.
Essas coisas perpassam na peça de Jorge Andrade, em cujo subsolo se jogam os dramas da tirania e da liberdade, da domina­ção e da submissão e, para dizer tudo numa palavra, do humano e do desumano, estreitamente entrançados.
O leitor gostaria que o mundo descrito nela fosse incerto no tempo e no espaço, como o da “Colônia penal” de Kafka, e sua prodigiosa máquina de torturar. Que fosse apenas uma fábula. Mas o fato de descrever a realidade presente lhe dá maior gravidade e uma ressonância patética.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: JORGE ANDRADE Parte 1


Jorge Andrade - 1922 - 1984
No tempo em que os críticos procuravam descobrir qual seria a “faculdade mestra” de um escritor, talvez dissessem que a de Jor­ge Andrade é a tensão, a crispação apaixonada com que afronta os problemas. num universo dramático onde o humor e a leveza mal se mostram. Pondo entre parênteses Os ossos do Barão, o que fica é de fato um mundo de intensa gravidade, construído por um autor que transforma a cada instante o relato em testemunho e a cena em conflito. Para Jorge Andrade as coisas têm um grande peso, que dá a cada gesto o timbre dos momentos decisivos.
Daí os temas obsedantes que recorrem no seu teatro e caracte­rizam os seus diferentes produtos. Sobretudo a terra e a família, marcados pela dimensão do passado. Já foi dito que ele é o primei­ro grande escritor do mundo rural paulista, isto é, da decadência das classes rurais dominantes, correspondendo ao arcabouço temático do romance brasileiro dos anos 30 e 40. A sua obra nasce das relações de avós, tios, primos: nasce do fato de alguém ser parente de alguém, num universo onde o parentesco define o lugar no espa­ço da sociedade. Mas o espaço da sociedade pressupõe um espaço físico, que aqui é a terra, como posse e como finalidade da vida. “Os bens e o sangue”, — eis uma epígrafe possível para o seu teatro, que, não cronológica, mas logicamente, começaria com O sumidou­ro, numa etapa quase mítica, para encontrar um marco real em Pe­dreira das almas, onde se propõe a história de uma família fazendei­ra de Minas, que vem para São Paulo buscar terras férteis e liberda­de de agir, pela altura de 1842. A moratória mostra o momento da queda, quase um século depois, e as outras variam, cada uma a seu modo, sobre o tema ostensivo ou implícito da perda do paraíso paternalista e rural, até o confinamento de A escada — quando as gle­bas de cultura e os campos de caça se evaporam e se transpõem no confinamento de um modesto prédio de apartamentos.
Mundo de donos da terra e seus descendentes, amargurados pela mudança de vida. Mundo até certo ponto senhorial, descrito às vezes com uma amplificação de tom que faz pensar em sentimento de classe dominante. Mas, se passou por aí, a obra de Jorge Andra­de não ficou aí. Mostrou que, por cima da aparente visão de classe, tencionava penetrar com maior amplitude na vida de todos os ho­mens. Aquela casta de fazendeiros era um mundo, não o mundo, Os seus dramas podiam ser pungentes e tocar a todos nós, mas não re­sumiam os trabalhos do homem.
    Por isso, no meio do painel senhorial veio se engastar  Vereda da salvação, ou seja, o mundo dos senhores visto pelo avesso, pelo lado dos trabalhadores miseráveis que, não encontrando saída na iniqüidade do sistema da terra, procuram uma abertura para o sis­tema do céu. Esta peça patética e forte, ao mesmo tempo que com­pleta, desvenda a intenção de testemunhar sobre o homem: é uma contraprova que inverte a perspectiva, passando da casa de fazenda para a casa de colono. Como Moleque Ricardo no ciclo de José Lins do Rego, ela amplia o panorama, acrescentando ao rico o pobre, ao dominador o dominado.
Pareceu então que Jorge Andrade encerrara a necessidade de falar sobre o mundo, por esgotamento do que tinha para dizer, a partir da experiência de um certo mundo. A edição do seu teatro completo como que materializou um estado de ânimo desse tipo, ao enfeixar num só volume tudo quanto tinha escrito até então, e que pôde organizar com tal coerência que a sua produção ficou pare­cendo rigorosamente programada. Programação apenas em parte consciente, regida por uma misteriosa ordem das profundidades, que denotava o peso das obsessões ligadas ao seu universo de ori­gem.
A seguir, ele passou pela experiência nem sempre feliz da tele­novela. Numa primeira peça, recozendo as fases mais pitorescas de suas crônicas da decadência: depois, tentando, com  O grito, mudar de craveira e temário. Foi quando abordou o homem da selva urba­na e os atalhos do dia-a-dia no nosso tempo de cidade grande. Tal­vez o resultado não tenha sido perfeito; mas para o escritor, foi fundamental. Quem acompanhava a sua carreira sentiu logo que ele es­tava, ao seu modo, liquidando uma fixação e tentando confusamen­te definir outra, O resultado só veio aparecer aqui, nesta peça admi­rável sob qualquer aspecto que é Milagre na cela, onde o grito da te­lenovela desigual aparece de outro modo e dá forma a um jeito re­novado de encarar as coisas. O passado está arquivado e Jorge Andrade, refeito por ele mesmo, se instala pela primeira vez no presen­te puro, para ver o nosso mundo sob alguns dos seus aspectos mais cruciantes.