Publico esta resenha sobre o espetáculo "Amores Surdos" apresentado no 15º Porto Alegre em Cena. estava vasculhando meus arquivos em busca de material para o ensaio e encontrei este texto que originalmente escrevi para a disciplina de Introdução a Direção Teatral da professora Jezebel de Carli. Creio que este foi o meu primeiro comentário crítico sobre um espetáculo, por isso tem um valor sentimental e divido com todos agora, o texto é de setembro de 2008.
Amores
Surdos
“Nós
temos que aprender a conviver com situações novas!”
No
Brasil, ainda se fala muito na crise da dramaturgia. Muitos consideram o teatro
contemporâneo como o grande vilão, chamando-o de vazio, pueril, sem
conteúdo. E o que precisaria acontecer
para tornar “este teatro” interessante? Antes de tudo acredito que o teatro,
seja ele qual for, pode e deve falar de questionamentos internos, relevantes,
que por mais simples que possam ser, esses sim, serão atemporais e universais.
Tudo isso para falar de Amores Surdos
de Grace Passô, dramaturga do Grupo Espanca! de Minas Gerais. Sua escrita se
alimenta na própria contemporaneidade, nesta relação cada vez mais estranha
entre o homem, o seu tempo e tudo aquilo que o cerca. A violência, as
incertezas e os caminhos da vida. Mostrando que é possível sim, fazer um teatro
interessante, renovador, onde não só a dramaturgia é o trunfo do projeto, mas
todo o tratamento dado a encenação que trata de temas cotidianos, simples, do
homem do nosso tempo.
Amores Surdos
fala de uma família, pai, mãe, quatro irmãos e uma irmã. Estes personagens não
se ouvem, não se enxergam, não se percebem, construindo uma metáfora da
passagem para a vida adulta e, conseqüentemente, a perda da inocência. O
mergulho executado pelo grupo para narrar à história de uma família
aparentemente comum, partindo de situações bem corriqueiras, atitudes como não
dormir bem, esquecer as chaves de casa, preparar o café, deixar a torneira
aberta e cuidar de um animal doméstico. No entanto, num mundo em que todas as
histórias parecem já terem sido contadas, o grupo sugere que há mais para ver e
sentir por trás de um quadro imperfeito, repleto de situações e de sentimentos.
Logo no
início, um dos rapazes nos revela que no final um telefonema informará que o
irmão mais velho, que mora num país distante, suicidou-se. Mas logo depois
alguém nos diz que o rapaz é sonâmbulo e aí ficamos sem saber se o que ele
disse foi verdade ou sonho. O irmão mais novo, criança ainda, é asmático e o
outro sofre de uma síndrome de pânico. A Irma por sua vez, fala sempre aos
berros por causa dos fones de ouvido de que jamais se separa. A mãe, de tempos
em tempos, reúne todos na sala para um ritual familiar: executarem juntos,
coreograficamente, um número de sapateado. Nessas ocasiões, tentam achar o pai,
mas ninguém sabe onde ele está. No final uma enxurrada de lama toma conta do
palco, as pessoas escorregam e caem imundas. É quando o filho mais novo revela
que há cinco anos, mais ou menos, havia trazido do zoológico um filhotinho de
hipopótamo que guardou no quarto do irmão que havia viajado. Desde então, o
hipopótamo vive lá. E, lamentavelmente, havia devorado o pai. Quando um dos
irmãos decide matar o animal, a mãe, pateticamente, grita: “Nós temos que
aprender a conviver com situações novas!” – e repete histericamente a frase
enquanto o telefone toca,toca, toca e ninguém atende.
No
ponto de vista da encenação, o espetáculo é extremamente minucioso em todos os
aspectos. No palco temos uma cenografia que nos remete a uma sala, onde
acontece a ação da peça. Temos paredes confeccionadas com um material parecido
com uma renda, que reflete através desta transparência o interior de cada
personagem, nos revelando o que ocorre por trás de cada um. O elenco dirigido
por Rita Clemente é ótimo, pois cumpre com brilhantismo a tarefa de interpretar
personagens que vão se revelando aos poucos, sublinhando os estados de alma dos
personagens e o calor das relações geralmente conturbadas entre eles, em
interpretações verdadeiramente apaixonantes.
A
encenação é surpreendente, pois agarra o espectador logo no início quando um
personagem dirige-se diretamente ao público e já anunciando o que irá
acontecer, que o telefone irá tocar e que receberá uma notícia de suicídio do
irmão. O que ele prevê realmente acontece, mas o mais surpreendente é o que
acontece antes do que já sabemos acontecer. Situações vão se revelando e se
encaixando para no final surpreender o espectador com uma lama que invade a
sala, a descoberta de um hipopótamo que vive no quarto e engole o pai, a mãe
que grita incessantemente e dança sapateado. A direção se utiliza disso, de um
bom texto, de bons atores, da simplicidade, de um número de sapateado, de ações
e gestos exatos e que provoca no espectador um misto de fervor, imaginação (um
hipopótamo no quarto!), beleza e poesia visual. Uma revelação de dramaturgia
num espetáculo áspero. E como o personagem da mãe grita ao final: “Nós temos
que aprender a conviver com situações novas!”, aproveito e digo, temos que
aprender a conviver com o novo, com grupos, atores, dramaturgos e diretores
novos, desde que tenha qualidade, como comprovou o Grupo Espanca! no auge dos
seus quatro anos. Nada de Zé Celso ou de Peter Brook (os quais admiro muito), o
Em Cena deste ano me emocionou com o novo. Temos que aprender a conviver com o
novo!
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