terça-feira, 12 de julho de 2011

BLASTED de Sarah Kane


No dia 19 de julho estaremos realizando a leitura dramática de BLASTED de Sarah Kane. Segue abaixo um estudo realizado por Juliana Pamplona, que ministrou a oficina sobre S. Kane em Montenegro.






BLASTED 
por Juliana Pamplona
Blasted se constrói em torno de uma relação abusiva entre Ian (um homem de quarenta e cinco anos) e Cate (uma jovem de vinte e um) com problemas mentais. A primeira parte de Blasted se passa num quarto de hotel onde uma relação desigual e violenta é evidenciada entre eles graças a uma economia de palavras que compõe falas pungentes. O desdobramento se dá quando uma explosão (indicada por um buraco de bomba no cenário) torna esta relação íntima um espelho para um mundo em guerra. No ambiente do hotel detonado, um novo personagem ganha foco, um soldado anônimo. A lógica da guerra toma conta das relações e Ian passa do pólo de torturador de Cate para o de vítima do soldado. A peça apresenta uma série de horrores: amputação, canibalismo, estupro, tortura etc. As personagens falam de maneira crua e seca. A representação da violência também apresenta inúmeros desafios. A própria encenação é convidada a achar recursos figurativos que deem conta de imagens de intensidades extremas que não poderiam ser representadas naturalisticamente. Imagens como a de um personagem em estado deplorável – cego e faminto em situação de guerra, que come um bebê morto, fazem deste pacto de recepção do público, “um pacto difícil”. Porém há uma especificidade nesta questão das imagens teatrais: elas devem se apresentar como teatrais. Não há nesta ação um esforço cênico de que a cena do canibalismo, por exemplo, pareça “real”, entretanto, a própria indicação em cena de que isto é feito suscita repulsa pela parte do público que não se propuser imaginar o ato.
Duas propostas diferentes de delineamentos de personagens podem ser apontadas em Blasted. Num primeiro momento Ian e Cate são apresentados em detalhes (idade, profissão, background, tipo de sotaque etc.), em breve descrição didascálica. No entanto, é através dos diálogos que as informações sobre essa relação se somam e as tensões entre ambos eclodem. O filtro das limitações de Kate e a rudeza de Ian são premissas para que este relacionamento abusivo se dê. As informações não são necessariamente expostas integralmente. Sabemos, por exemplo, que Cate e Ian não se vêm há alguns anos (“vários anos”, nas palavras dela) indicando que Cate estaria, na melhor das hipóteses, na adolescência quando começaram a se relacionar sexualmente. É também a partir dos diálogos, como quando Ian a chama de “retardada” ou das falas infantilizadas que revelam pouca consciência do abuso da parte de Cate, que um abuso psicológico se revela e faz com que outros tipos de abuso, como o físico, se deem. Apesar das premissas que indicam claramente um carrasco e uma vítima, estes lugares não se sustentam da mesma maneira ao longo da peça. Ian é transportado para o outro lado quando se torna vítima das atrocidades do soldado anônimo que invade a cena da mesma forma como ocorre, em seguida, a explosão de uma bomba que detonará o espaço físico. Ao final da peça, Ian está em estado deplorável, cego e faminto, e dependente de Cate, que com boas ou más intenções – não importa – descarrega a arma de Ian impossibilitando-o uma morte mais breve (Ian diz ao longo da peça que, apesar de “assassino”, não fazia suas vitimas sofrer, simplesmente atirava mas, este não tem a “sorte” de uma morte rápida).
A segunda proposta de personagem identificada em Blasted diz respeito ao soldado. Personagem cuja função é mais importante do que a identidade. A falta de personalização da figura do soldado se justifica no fato de que sua função se iguala aos demais soldados citados na peça, que estariam espalhando horror por toda a parte também do “lado de fora” de onde a cena se passa. As descrições das torturas praticadas sadicamente pelo soldado são detalhadas. Mas, estas experiências de tortura não são exclusividade de sua biografia, pois também estão por toda a parte na peça. O espaço do hotel tem sua identidade “transtornada” ao se configurar a partir de um rombo da “parede” como campo de batalha (sem que isso seja explicado em cena, do mesmo modo em que uma guerra pode varrer vidas sem prepará-las antes). A não-identidade do soldado faz parte desta outra lógica, que dispensa que o soldado atenda a um nome. A personagem pertence a um coro implícito de soldados que vão contaminando a peça do segundo ato até o final.
Outra personagem indicada (no sentido de figuração humana presente em cena), porém que não exige necessariamente mais do que um boneco para representá-la é o bebê. Cate surge com um bebê no colo (cuja mãe foi morta na guerra). O bebê chora e logo morre de fome e é enterrado por Cate. Num curto espaço de tempo ele é referido em cena como “it”, e depois, Cate o chama de “she”, mas o bebê já está morto.
As imagens propostas em cena indicam que estes personagens passam por situações extremas. A alta voltagem da violência e do desespero humano os marca. Para melhor analisar este efeito, é interessante suspender a noção de personagem separado dos demais elementos de construção do tecido dramatúrgico, e tentar enxergar como são criados estes momentos que ultrapassam os limites. Um dos momentos mais intensos que envolvem, por exemplo, o personagem Ian desesperado de fome, desenterrando e comendo o bebê, é construído em flashes. Tal construção de imagens impactantes não é apenas conduzida pela personagem, mas também por uma rigidez de tempos e luz. Apesar dos flashes rápidos, a noção de tempo é estendida pelo fato da luz marcar o passar dos dias. Esta proposta sequencial exige uma precisão formal que mais se assemelha a uma sucessão de quadros vivos do que a uma vivência em tempo presente de cada um dos momentos extremos em suas progressões, transições e ritmos “orgânicos”. É possível recortar, para fins analíticos, dois tipos de procedimentos de escrita cênica em suas bases estruturais para exemplificação: a primeira parte possui diálogos breves que permitem um acompanhar da situação em tempo contínuo e, na segunda, uma sucessão de imagens impactantes.

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