quinta-feira, 14 de julho de 2011

CLEASEND



No dia 20 de julho estaremos realizando a leitura dramática de CLEASEND de Sarah Kane. Segue abaixo um estudo realizado por Juliana Pamplona, que ministrou a oficina sobre S. Kane em Montenegro.







CLEANSED
por Juliana Pamplona
Um forte câmbio de identidades é trabalhado nas personagens de Cleansed alterando seus posicionamentos dentro das relações com os outros, seus nomes próprios e até gêneros e corpos físicos. Há em Cleansed camadas que diferem as personagens em níveis de figuração mais ou menos delineados. É possível dividi-la em pelo menos quatro camadas: uma correspondente a Grace, Tinker, Rod, Carl e Robin; a segunda que envolve Graham; a terceira referente à “mulher”; a quarta, das “vozes” e ainda uma camada limítrofe de figurações de fenômenos vivos, como um coro de ratos e as flores que nascem e crescem repentinamente no meio da cena.
Grace, Tinker, Robin, Carl e Rod se apresentam inicialmente com algum nível de “inteireza”. Ao longo da peça, Carl e Rod vão perdendo membros de seus corpos ao serem torturados por Tinker e também sofrem grande transformação dentro da relação amorosa que os une. Tinker sofre transformações de ordem afetiva, o que contrasta com a crueldade praticada pelo mesmo ao longo de toda a peça. Robin se suicida, não resistindo a humilhação de Tinker e a indiferença de Grace. A identidade de Robin cambia através das roupas de Graham doadas a ele quando morto e, depois, quando se vê obrigado a devolvê-las e a usar as roupas femininas de Grace (que passa a se vestir com as roupas do seu irmão, Graham). A identidade de Grace sofre transformações em vários níveis: a do vestuário; do nome (passa a ser chamada de Graham ao final da peça); do gênero (constrói para si aos poucos uma identidade masculina) e de sexo (sofre uma cirurgia em que perde os seios e ganha os órgãos genitais masculinos). Grace tem ainda outra particularidade “trans”: ela transita entre duas realidades, a das personagens no hospital (dos vivos) e a do irmão (do morto), pois ela interage com Graham da mesma forma (ou de maneira mais intensa) que interage com os demais personagens.
Graham obedece a processos figurativos similares aos citados acima (pertencentes à primeira camada), mas, o fato de não estar vivo e transitar da mesma maneira (com o mesmo poder de interferência) na realidade dos “vivos”, a personagem de Graham cria ruídos na comunicação entre Grace e os demais “vivos”. Graham é um fantasma, uma fantasia, mas não é por isso menos “presente”. Ele dança, fala e até tem relações sexuais incestuosas em cena. O que o difere é a função que adquire em cena devido a sua condição de morto e a forma com que outra personagem (Grace) vai se transformando nele gradualmente: no gestual, na voz, e no gênero, até ganhar o seu nome.
A “mulher”, uma stripper frequentada por Tinker, é um corpo sem nome, sem identidade, mas com uma função. Na medida em que sua “função” (de dançar para que o cliente goze) é modificada na relação com Tinker, ela passa a adquirir a identidade por ele projetada nela. Tinker a chama de Grace, e ela se revela uma “Grace”.
As “vozes” são personagens invisíveis, mas não por isso com menos capacidade de interferência “física” nas cenas. Elas espancam, torturam e estupram. Os agentes são vozes e barulhos de pancadas que fazem suas vítimas reagirem fisicamente, como podemos ver na cena 10. Graham, o personagem “ausente” devido a sua codificação de “morto” é o único interlocutor de Grace “presente” fisicamente. Este personagem “ausente” é o único que de fato a toca ao vivo na cena. As reações de Grace tornam um elemento cênico imaterial, como a voz, em um agente físico. A meu ver, este é um dos pontos cruciais da noção de teatro com a qual Sarah Kane quer dialogar. “Too much realism limits the power of sugestion” (1) diz Kane. Quanto às convenções cênicas, Cleansed testa seus limites ao apresentar coisas extraordinárias que acontecem em cena, as flores (daffodils) crescendo no palco sugerem um tipo de “vida” fantástica que supera os limites da natureza. Assim como, em outro momento da peça, um coro de ratos arrasta pedaços do corpo humano. Estes personagens não são necessariamente representados por “pessoas”, mas são figurações de seres vivos ativos em cena que se oferecem como problemas para a encenação.

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