"Emsaias?!" é mais um espetáculo que chegou a Montenegro através do Circuíto Universitário promovido pelo SESC-RS. A peça é resultado de uma disciplina dentro do curso de artes cênicas da UFSM.
Trata-se de uma adaptação da obra "A casa dos budas ditosos" de João Ubaldo Ribeiro, onde o autor trata do pecado da luxúria. É o relato escaldante das memórias de uma velha baiana libertina que reside no Rio de Janeiro. Desde a sua adolescência na Baía, passando pelos Estados Unidos, até ao Rio onde vive, esta mulher seduziu ao longo da vida amigos e familiares, casados ou solteiros, rapazes e garotas, a sós ou em grupo, para participarem nas suas imaginativas atividades sexuais. A linguagem do livro é despudoradamente crua, mordaz, corrosiva, mas pontuada por apurado sentido de humor.
O espetáculo tenta transpor para o palco toda essa sagacidade da obra. Consegue em vários aspectos, mas em outros não, como segue a análise.
Ressalto primeiramente a ousadia do ator Leonardo Bergonci, na transposição do romance para o teatro e segundo por calcar sua pesquisa na criação do binômio macho/fêmea, feminino/masculino, e que esta premissa já é com certeza um grande momento do trabalho.
Porém a concepção do trabalho falha ao criar uma premissa que não consegue se sustentar ao longo do espetáculo. Inicialmente temos quatro atores no palco, vestindo apenas sungas e realizando uma espécie de aquecimento. Logo em seguida, uma voz em off anuncia que trata-se de um teste e pede para que o ator (Leonardo Bergonci) inicie o seu teste, dando-lhe várias indicações. A partir daí, Leonardo começa a personificar a figura de uma mulher devassa que divide com o espectador suas experiencias sexuais. Os demais atores a partir daí aparecem apenas para trazer ou tirar adereços na cena, ou em pequenas situações que não chegam a alterar o rumo da cena. Creio que a presença dos atores é um grande equivoco e desperdício, pois ao tratar de um tema que, em pleno século XXI ainda é tabu, o espetáculo perde a grande chance de explorar a presença e os corpos dos atores que inicialmente se apresentam no palco. Os corpos expostos poderiam ser muito mais explorados, pois tínhamos corpos magros, gordos, esbeltos, altos, baixos, fortes, peludos, enfim, corpos que mereciam ao menos uma atenção, um olhar que poderia ser explorado dentro deste arquetípicos femininos. E toda esta imagem inicial é abandonada sendo que os atores acabam ficando apenas com a função de contra-regras. Compreendo que o trabalho recaí sobre a figura de Bergonci, mas qualquer objeto ou pessoa que está na cena merece uma atenção e justificativa, ou senão não há necessidade de sua presença. E neste caso surgem duas opções na minha opinião: Ou estes atores fazem realmente parte da cena, ganhando um sentido maior para a encenação, ou sua presença não é fundamental e se elimina sua participação, centrando o foco apenas na figura de Leonardo, o que já acontece (e é muito bom), mas pelo menos não cria no espectador uma expectativa que acaba não se concretizando.
Compreendo a ideia do ensaio, que já está presente no trocadilho do título: "Emsaias?!", que sugere um ensaio, ou alguém que veste saias e que é bastante condizente com a proposta que assistimos, mas até mesmo essa ideia do ensaio acaba se esvaindo e não acontecendo efetivamente.
Ressalto que o trabalho de Leonardo Bergonci é um trabalho digno de atenção, pois tem potência e competência. Consegue segurar e manter o espetáculo por mais de uma hora e tratando-se de um monologo não é tarefa fácil. Sua interpretação se dá através de relatos que demostram, descrevem ou evocam a libidinagem da personagem. Sua construção da figura feminina é na medida, pois em vários momentos se esquece que é um ator quem está dando corpo a uma mulher, isto acontece quando embarcamos na história, em outros momentos isso não acontece, principalmente quando o ator erra o texto e tenta demostrar que faz parte do ensaio, mas o espectador percebe que aquilo não é parte do jogo proposto. Por isso eu penso que o ator poderia mergulhar intensamente na construção desta figura, e esquecer de tudo o que pode atrapalhar a contar essa historia. Bergonci demostra o domínio da cena, através de um partitura de ações e de sua presença. E este é um dos grandes méritos da produção, sua presença! É um ator inteligente que age e reage muito bem as participações da platéia.
Outra questão é quanto a fluência do texto que muitas vezes cai na linearidade, não flui, fica truncado. Em outros momentos o ritmo é vertiginoso e é nestes momentos que o ator tem a platéia em seu domínio.
Os outros aspectos da encenação estão todos muito bem encadeados, como a neutralidade dos figurinos, o cenário minimalista, a pontual iluminação, enfim, todos a serviço da cena.
Em suma, trata-se de um bom exercício sobre o trabalho de ator, que revela um artista em potência, preocupado em falar de temas caros a sociedade, desvelando uma poética que trás a cena um humor corrosivo e necessário, reafirmando o bom momento que vive as artes cênicas da cidade de Santa Maria.
Um espetáculo que com o tempo ganhará o ritmo necessário que em alguns momentos ainda carece, mas que não pode deixar de ser assistido, pela qualidade demostrada em cena.
Que este seja apenas o inicio de uma linda trajetória.
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