domingo, 18 de novembro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: ODUVALDO VIANNA FILHO


Coordenou o projeto editorial de Edições Muro que pretendia publicar a obra completa de Oduvaldo Vianna Filho, mas lançou apenas o primeiro volume da coleção. Integrou três comissões julgadoras que atribuíram o primeiro lugar a textos de Oduvaldo Vianna Filho: Prêmio Coroa de Teatro, para A Longa Noite de Cristal, e Concurso Nacional de Dramaturgia do SNT, para Papa Highirte e para Rasga Coração.
Quando o então jovem dramaturgo Jorge Andrade, por ocasião de uma viagem de estudos à América do Norte, entrevistou-se com Arthur Miller e pediu-lhe conselhos para o futuro da sua carreira, ouviu do consagrado autor norte-americano mais ou menos a seguinte resposta: “Volte ao seu país, observe como o seu povo vive, como gostaria de viver, e escreva sobre a diferença”
Esta mesma receita parece constituir um dos possíveis denomi­nadores comuns entre a dramaturgia de Vianinha. Os protagonistas de Papa Highirte, de Rasga Coração e de Mão na Luva, embora muito diferentes entre si, são todos altamente representativos da população brasileira, entre outras coisas precisamente na medida em que existe uma drástica discrepância entre, por um lado, o que eles gostariam de ser e como gostariam de viver e, por outro, o que eles de fato são e como eles de fato vivem; e é justamente sobre esta diferença, mais talvez do que sobre qualquer outro aspecto das suas existências e das circunstâncias que as envolvem, que Vianinha escreve, com dolorida compreensão e compaixão humana, que não exclui uma lúcida e por vezes impiedosa análise das suas contradições.
Cada um destes multifacetados personagens tem na cabeça um projeto de vida claramente definido, embora profundamente subjetivo, pois movido a wishful thinking — ou seja, dissociado da capacidade real de cada um de colocá-lo em prática. Juan Maria Guzamón Highirte pretende ficar na história como uma espécie de Getúlio Vargas de Alhambra, um paizinho dos pobres preocupado com o bem-estar do povo, e responsável por uma série de leis que tenham contribuído para melhorar as suas condições de vida. Seu antagonista, Maria, queria (ainda que com algumas reticências...) participar de uma revolução que derrubasse o governo tirânico e introduzisse em Alhambra a justiça social. Manguari Pistolão, o herói anônimo de Rasga Coração, dedicou grande parte de sua vida à política uma humilde política ao alcance dos heróis anônimos —, no empenho de ajudar o Brasil através da sua modesta contribuição individual, a tornar-se um País melhor, mais consciente dos seus problemas, mais apto a resolvê-los. Seu filho e antagonista, Luca, irmana-se com ele em objetivos semelhantes, mas através de caminhos completamente diferentes. as transformações que ele almeja não se colocam no terreno da política, e sim no de uma reforma de costumes, da ética, da visão existencial, da erradicação da maneira de ver as coisas, característica de geração falida dos seus pais. O protagonista de Mão na Luva, ao longo da peça referido apenas como Ele (mas no final identificado pelo seu nome próprio, Lúcio Paulo Freitas), pretende firmar-se como intelectual contestador, através de adesão a uma produção independente um jornal alternativo, uma editora que rejeite os canais institucionalizados de comunicação, desvirtuados pelas contradições do regime capitalista.
Nada disso dá certo. Quer devido a pressões que o contexto social adverso da etapa pós-64 exerce sobre todos estes a seu modo bem intencionados indivíduos, impedindo-os de transformar os seus propósitos em realidades, quer por causa da frágil força de vontade de cada um, eles acabam fazendo escolhas que entram em conflito com os caminhos que, nas suas respectivas cabeças, eles se haviam traçado. Highirte é humilhantemente repelido pelo seu país, que vê nele apenas um tirano sanguinário. Maria não faz revolução nenhuma, denuncia debaixo de tortura seus companheiros de luta, e acaba matando Highirte num momento em que tal gesto já se tornou politi­camente inócuo. Manguari continua fiel às suas convicções e aos seus rotineiros rituais que ele considera políticos, sem perceber que na verdade se tornou um pequeno-burguês acomodado, atemorizado, omisso. Luca foge da luta a que em princípio se propusera, pela esca­patória da droga e da alienação. E o Ele de Mão na Luva renega pelas opções de cada dia aceitação de um prestigioso cargo público, perma­nência na redação da revista onde precisa fazer concessões após con­cessões tudo aquilo que, de boca para fora, ele continua sustentando como sendo os objetivos que ele se teria traçado.
Na verdade, por mais simpáticos e humanos que alguns deles sejam, por mais que possamos identificar-nos emocionalmente com as suas hesitações e contradições, o fato é que todos eles são, a seu modo, traidores. E Vianinha dá-se ao luxo de atribuir a cada um deles um momento (ou alguns momentos) de claríssima falha tnigica — expressão cunhada por Aristóteles há mais de 2.300 anos —, a partir da qual não há mais volta atrás. Não é necessário que essa falha tenha sido fruto de deliberada má fé: o herói trágico por excelência, Édipo, comete a sua sem ter a mínima chance de dar-se conta de que a está cometendo. Os heróis de Vianinha, menos expostos à fatalidade divina, dispõem de uma dose maior de livre-arbítrio, e portanto teriam de algum modo podido escapar à maldição da traição. Supõe-se que não eslava fora do alcance de Highirte deixar de instalar em Alhambra o reinado de tortura e arbítrio em que seu país transformou-se durante o seu governo. Que não teria sido humanamente impossível a Mariz resistir às torturas a que foi submetido, evitando assim a sua falha trágica de denunciar os companheiros. Que, da mesma forma, Manguari poderia ter evitado, no plano do passado, acovardar-se e humilhar-se diante dos seus tortu­radores, assim como no plano do presente não precisava acovardar-se e humilhar-se como o fez diante das pressões do seu dia-a-dia. Que Luca, no clímax dramático da sua trajetória, não precisava ter denunciado a sua namorada Milena ao diretor do colégio. Que Lúcio Paulo Freitas, o Ele, podia muito bem se ter mostrado mais solidário com os seus colegas, acompanhando-os na previamente combinada saída da revista vendida a interesses escusos para um jornal independente e limpo, em vez de beneficiar-se com os cargos e funções que se tornaram vagos com a saída dos companheiros. Mas se eles acabaram fazendo estas e não outras opções, é que em algum canto das suas respectivas perso­nalidades eles, contraditoriamente, não eram capazes de agir de outra maneira. a macunaímica falta de uma maior firmeza de caráter, flagran­te nestas suas escolhas decisivas, eqüivale, nos seus universos contemporâneos vazios de deuses, à fatalidade divina das falhas trágicas dos heróis gregos, e faz deles, a seu modo, autênticos heróis trágicos da modernidade brasileira, em que gestos pequenos e medíocres, quando não meras omissões, substituem a grandeza clássica de Édipo matando o pai e casando com a mãe.
Curiosamente, todos estes humaníssimos traidores são do sexo masculino. As mulheres que com eles convivem, como sempre na obra de Vianinha figuras até certo ponto de segundo plano e mais monolíticas mas nem por isso menos patéticas do que os seus maridos, amantes e amigos, percorrem trajetórias mais retas, mais fiéis aos ideais de vida que adotaram (ou que lhes foram impostos pela sua posição mais passiva no conjunto das forças em jogo). A velha Grissa permanece fiel à lembrança do seu assassinado sobrinho Manito e à sua atávica lealdade ao seu pais, Alhambra; enquanto Graziela consegue ser igual­mente fiel a duas figuras antagônicas, Mariz e Highirte. Nena, mulher de Manguari e mãe de Luca, não deixa nunca de aceitar e respeitar as frágeis razões e motivações tanto do marido quanto do filho, sendo sem­pre uma emérita colocadora de panos quentes entre os dois. E se é verdade que Sílvia, a Ela de Mão na Luva, chega a trair esporadicamente o marido (pelo menos o que ela lhe conta mas será que podemos ter certeza de que os adultérios aconteceram de verdade?), ela o faz (se é que de fato o faz) movida pelo impulso de uma fidelidade maior a fidelidade a uma imagem ética idealizada pela qual, anos antes, ela se havia originalmente apaixonado. E, de qualquer maneira, no desfecho ela acaba voltando ao seu compromisso amoroso mais forte, mesmo sabendo, agora, que ele não corresponde àquela imagem ideali­zada. Magníficos personagens femininos, mas talvez sem a mesma irresistível verdade nos meios-tons e nas contradições que caracteriza os seus parceiros.
Do ponto-de-vista da estrutura dramatúrgica, as três peças apre­sentam o denominador comum de uma brilhantemente trabalhada construção em diversos pianos de tempo um recurso que Vianna, depois de superar a narrativa linear das suas primeiras obras, foi domi­nando e burilando pacientemente, até alcançar o notável virtuosismo e complexidade com que esse recurso é manejado no seu canto de despedida, Rasga Coração, em que a manipulação das técnicas de contraponto cronológico adquire as dimensões de uma personalíssima poética. Em Papa Highirte, a estrutura temporal assume uma forma mais convencional mas nem por isso menos eficiente de uma ação presente única, intercalada por pequenos mais incisivos flash-backs que a explicam, justificam e comentam. Já em Mão na Luva os planos do passado são mais do que meros flash-backs: são eles, na verdade, que definem toda a noção de evolução dos personagens, e as suas dife­rentes distâncias no tempo, em relação à ação presente, são dados fundamentais para a correta assimilação da história. Os sofisticados contrapontos, muitas vezes sob forma de uma mesma fala ou uma mesma imagem repetidas, ironicamente, em diversas épocas da traje­tória dos personagens, adquire um sentido diferente de acordo com o contexto da data em que foram formuladas, constituem um elemento essencial para a elaboração do envolvente universo poético da peça.
Papa Highirte e Rasga Coração já são verdadeiros clássicos da moderna dramaturgia brasileira, desde a divulgação que o primeiro destes textos teve ao vencer, em 1968, o Concurso Nacional de Dramaturgia do então Serviço Nacional de Teatro, causando a suspensão desse evento por seis longos anos, e desde que Rasga Coração repetiu a vitória na retomada do mesmo concurso, em 1974; sendo que em ambos os casos as peças foram proibidas pela Censura, imediatamente após terem sido premiadas. A quase simultânea encenação de ambas, na euforia da abertura que caracterizou a temporada teatral carioca de 1979, permitiu que elas fossem amplamente vistas e debatidas, embora não se possa considerar que o debate a respeito destas densas e complexas obras já se acha esgotado. No futuro, novas encenações poderão contribuir para enriquecer a discussão. De qualquer modo, a presente reedição dos dois textos, reunindo-os num mesmo volume, afigura-se muito oportuna, pois as publicações antes promovidas pelo SNT, em volumes avulsos e em tiragens muito inferiores à procura, acham-se há muito esgotadas (sendo que a de Papa Highirte, na ver­dade, nunca chegou a circular).
Mas tudo indica que a grande sensação deste volume será Mão na Luva Em primeiro lugar, pela surpresa que representa: uma peça de Oduvaldo Vianna Filho escrita em 1966 e mantida inédita e não encenada até agora constitui, a esta altura, para os incontáveis admi­radores e estudiosos do autor, um prato inesperado. Mas o seu inte­resse não se limita à sua novidade. Trata-se de uma obra que parece pre­destinada a despertar emoções e controvérsias, que provavelmente rece­berão um adicional impulso quando a peço chegar finalmente ao palco, o que, segundo tudo indica, deverá acontecer neste ano em que transcor­re o 10ª aniversário da morte do autor. À prováveis controvérsias não deixarão de apontar para o que a peça tem de substancialmente diferente de todo o resto da obra de Vianna. Como nenhum outro dos seus textos, este é um apaixonadíssimo poema de amor, recitado através de diálo­gos de um lirismo desenfreado, às vezes singularmente pouco submisso às normas do raciocínio, aspecto surpreendente em se tratando de um dramaturgo que na época questionava, às vezes duramente, a exaltação do irracionalismo no teatro do fim dos anos 60. Mas a peça acaba cons­truindo a sua lógica própria, que passa pela trilha da paixão e da poesia. Com efeito, não hesito em prometer que o leitor encontrará aqui algumas das mais passionais, belas e comoventes declarações de amor até hoje escritas para o teatro no Brasil. E, por outro lado, este por vezes quase delirante grito lírico não exclui a presença de um poderoso e rigoroso contexto histórico, social e político. Pelo contrário: os cami­nhos e descaminhos da dolorida paixão que une Ele e Ela são sempre determinados, na dosagem exata e com perfeita clareza, pelas pressões do momento histórico que o casal e o país atravessam. Assim, como sempre, Vianinha mostra-se contrariamente, poderíamos dizer, aos seus personagens exemplarmente coerente com o seu projeto de vida, ao mesmo tempo em que nos mostra que tal coerência não impede mergulhos profundos em formas extraordinariamente diversificadas de criação artística.

Yan Michalski

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