segunda-feira, 28 de março de 2011

DIA DESMANCHADO - Comentário Crítico


Na quarta-feira, dia 23 de março, a peça “O Dia Desmanchado” do Grupo Torto de Porto Alegre apresentou-se em Montenegro, com a bela atuação de Marcelo Bulgarelli. A proposta da dramaturgia era a de trabalhar a interpenetração das diversas temporalidades no instante, da intersecção do presente, do passado e do futuro no momento fugidio do aqui e do agora. Não se resolvia apenas na finitude que caracteriza fundamentalmente nossa condição humana, mas nas diversas camadas de tempo que se cruzam em nossas ações. A espera, a projeção de um encontro amoroso futuro, modifica nosso comportamento no presente, destila potencialidades de sentido ocultos em nossos gestos, sobredetermina a relação que mantemos com os objetos que nos rodeiam. Do mesmo modo, a rememoração das potencialidades não realizadas do passado altera nossa visão do presente que busca realizá-las no futuro. É isso que W.Benjamin tem em mente quando fala das potencialidades de emancipação que as revoluções passadas frustradas guardavam no seu interior e que devem ser atualizadas no futuro. Não se trata de que o presente guarda o passado e projeta o futuro, mas de que o presente só existe na medida em que ele se lança para frente de maneira a tomar consistência; do mesmo modo, o passado só adquire sua necessidade retrospectivamente, ele é postulado a partir de uma posição vazia e contingente. Após o surgimento do evento amoroso, todos os acontecimentos passados adquirem um novo contorno como se tivessem existido apenas para dar origem a este evento. Um outro exemplo pode ser apanhado do lado da função do olho humano: ele não apenas capta a forma de um objeto exterior, mas inscreve aquilo que ele realmente vê em uma trama de recordações e antecipações que ampliam a gama de sentidos dessa realidade vista. A realidade nunca é percebida puramente, pois, ao contrário da opinião padrão, ela não é fechada, imóvel, autoconsistente. Ela é permeada de inconsistências, falhas e lacunas que são preenchidas pela fantasia, isto é, a realidade, anterior à percepção consciente, é um fluido incessante de potencialidades que são coaguladas, que a fantasia reduz uma realidade positivamente constituída.  No entanto, gostaria de ressaltar, não tanto as técnicas e princípios da biomecânica que orientaram o processo da peça – cujo conteúdo desconheço, e que são muito bem dominados por Marcelo – mas de dois aspectos correlatos a estes princípios. Como Marcelo enfatizou, a composição da sua atuação tomou a partitura musical como modelo, sendo que suas ações são ritmadas, construídas segundo um compasso temporal que se repete e varia nas diversas cenas. Contudo, o primeiro aspecto que gostaria de destacar diz respeito à desestruturação do corpo, ao “desmanche” do organismo em órgãos autônomos. A mão e a perna que se destacam do corpo, que ganham uma certa independência com relação à vontade subjetiva do personagem, não podem ser encaradas como expressões da personalidade solitária e sonhadora que viveria em uma temporalidade mecânica e vazia. A mão e as demais partes do seu corpo que o carregam a despeito de sua intencionalidade racional indicam a separação dos órgãos de sua organicidade imaginária (eu sou aquele que controla os seus movimentos) de modo que eles flutuam ao seu redor, manifestando uma intensidade mecânica que se move para além do sentido, que não podem ser relacionadas com alguma identidade psicológica do personagem. Uma intensidade flutuante, o fato dos órgãos desse corpo funcionarem de uma maneira desprovida de intencionalidade consciente, é algo desprovido de significado e que só ganha alguma consistência em virtude de sua repetição (aí sim pode-se identificar algum sentido ou perceber alguma tonalidade afetiva neles). Pois qual seria o significado social, o contexto narrativo, que desvendaria o sentido dessa repetição de gestos, desses órgãos separados e autônomos? Seria a representação da alienação do sujeito imerso em mundo que foge do seu controle, o simples desespero silencioso da mecanicidade da cotidianidade das vidas? Muitas das cenas da peça lembram a comédia de palhaços em que o órgão que se desprende do corpo representa um excesso, algo que se apresenta em sua plena autonomização: a mão que continua a abanar mesmo após ter cessado a intenção do agente, que se agarra aos objetos e não os solta, que se volta contra a própria pessoa procurando matá-la, etc. E isso acaba introduzindo o segundo aspecto que gostaria de ressaltar rapidamente: a desintegração da fantasia, da ilusão que sustenta a realidade, que dá as coordenadas que nos permitem movimentar entre os objetos, reconhecê-los. É bom ressaltar que a fantasia está sempre do lado da realidade, é aquilo que dá à realidade a sua consistência e sua ilusão de plenitude; ao mesmo tempo é aquilo que nos diz como desejar, quais são os objetos do nosso desejo. Bom, o que resta depois que a fantasia é desmanchada, em que o encontro amoroso e os preparativos fracassam? Nada, um espaço vazio em que as coisas circulam e continuam a assombrar o sujeito. Ou talvez a aparição da mosca gigantesca em seu sonho seja a indicação do encontro traumático com um Real que permanece o núcleo não diluído, não desmanchado desse dia que, na sua repetição, sempre introduz algo novo, descobre camadas temporais insuspeitas no presente.

Postado por André Susin - Mestre em Filosofia UFRGS. Ator e músico do Grupo Válvula de Escape

Nenhum comentário:

Postar um comentário