sábado, 21 de maio de 2011

Luto e Melancolia em “Trilhas Sonoras de Amor Perdidas”


Por André Susin*

Uma primeira leitura do próprio título da peça, dirigida por Felipe Hirsch, pode nos dar uma ideia preliminar daquilo que constitui a sua trama dramática: o objeto perdido. Quando a peça se inicia propriamente, o que temos é um homem solitário, perdido no meio de caixas, revistas e discos, insone, descrevendo o que ele observa da distância da janela do seu apartamento.
No seu ensaio, Luto e Melancolia, Freud opõe o trabalho do luto ao trabalho da melancolia. Nesse sentido, Freud pode distinguir entre um luto normal, que permite a bem sucedida aceitação da perda, e a melancolia enquanto patologia, isto é, o sujeito melancólico persiste em sua identificação narcísica com o objeto perdido. Isso tem duas claras implicações: a primeira diz respeito à diferença entre luto e melancolia – enquanto aquela confronta o sujeito com a falta constitutiva do próprio objeto do desejo, esta anula a falta na medida em que o sujeito se nega a aceitá-la, apegando-se ferrenhamente ao objeto tomado na sua materialidade sensual. A segunda, diz respeito ao estatuto da perda e da falta – enquanto esta é aquilo que define o objeto do desejo (este nunca existiu, não passa de positivação do nada), aquela faz da falta uma perda, isto é, anula a falta na medida em que coloca no seu lugar um objeto perdido (mas esse objeto, por definição, sempre esteve perdido).
A partir disso, o que temos é um desencanto da memória na medida em que o sujeito se mantém intrinsecamente vinculado ao objeto perdido; ou seja: o que temos é uma memória que aprendeu a anular toda expressão (e que explica o tom quase coloquial, como se o personagem nos tomasse como cúmplices dessas memórias obscenas de sua vida, que vemos algumas vezes em cena; temos a impressão de termos deixado o teatro e passado a ouvir as confissões indiferentes de um melancólico), de modo que a descrição desse passado adquira um valor de pura exposição. Com essa expressão, “pura exposição”, nos referimos ao caráter meramente imaginário que procura recobrir tudo em uma simples aparição. Para tornar mais claro isso, poderíamos nos remeter ao interminável falatório da peça, em que temos a impressão que o personagem sente uma íntima necessidade de “dizer tudo” sobre seu passado, sobre sua amada Soninho. Ora, esse dizer tudo implica precisamente na anulação de qualquer “dito”, de seu conteúdo, a fim de reduzi-lo a um objeto. Assim, ao anular todo o conteúdo nesse dizer tudo (o que nos importa saber o sentido do que é dito, quando se quer dizer tudo, quando a fala não se decide por nada, embaralhando um amontoado de lembranças em uma imagem absoluta?), ele é reduzido a um objeto em sua imediaticidade, algo aparente que pode ser completamente assimilado na sua descrição narrativa.
Dessa forma, o estatuto do amor se vincula a essa disposição melancólica do personagem principal com relação ao objeto perdido. O amor é concebido como adoração de um objeto sublime, ou seja, um objeto banal e ordinário que é sublimado de modo a se tornar inacessível e desumanizado. Ao contrário disso, amar significa ver no objeto de desejo essa falta inerente a sua constituição. Em outras palavras, significa que deixamos aberta a lacuna que separa, no próprio objeto do amor, aquilo que nele é banal, ridículo, com aquele algo mais que não conseguimos definir. No entanto, Soninho é este puro “algo mais” do qual o protagonista não consegue abdicar. E se às vezes ele nos mostra ela no seu aspecto ridículo, é somente para ridicularizar seu objeto de desejo de uma distância segura, isto é, sem envolver sua identificação narcísica com esse “algo mais”. Em outras palavras, ele preserva esse “algo mais” mesmo quando denigre a imagem de seu objeto amado, pois Soninho sempre volta para assombrar sua vida.
É nesse ponto que podemos vincular as canções que suscitam passagens da vida do personagem com o estatuto do objeto perdido: as canções possibilitam que esse objeto seja assegurado para sempre, que o amor seja transferido para um “tempo eterno”, não sujeito à passagem e ao esquecimento. É nesse sentido que a verdade do encontro amoroso da qual o sujeito é o suporte – para usar a terminologia de Badiou – é negada na medida em que o sujeito transforma o objeto do desejo em objeto precioso (“algo mais”, “identificação narcísica com o objeto perdido”), guardando-o nas suas velhas caixas repletas de revistas e fitas, misturado a antigas e ultrapassadas canções de amor, solidão, morte. Assim, quando ele remexe essas caixas velhas, ele pode se deparar com um imenso gozo ao contemplar essa joia rara que incorpora esse objeto sublime, inacessível e impossível. Ora, se esse passado só se materializa através da trilha sonora, é porque ambas compartilham da mesma estrutura: as canções gravadas na banda metálica da fita cassete, mercadoria obsoleta que resiste a ser deixada de lado, se aderem aos momentos vividos que insistem em serem reproduzidos – seja no aparelho de rádio, seja na encenação da memória do personagem.
O desfile incessante de temas musicais que remetem a fatos do passado, a sensações vividas, testemunha essa recusa em esquecer o objeto. Trata-se para ele de manter-se fiel ao objeto do desejo enquanto objeto perdido e inacessível (ou melhor, só acessível enquanto retido na sua perda) e que, paradoxalmente, lhe permite a imersão nos novos objetos dispostos pelo mercado (cds, ipods, etc.) e em novos relacionamentos amorosos, mas somente enquanto eles trazem a marca desse objeto perdido. E não seria essa a disposição melancólica que caracteriza fundamentalmente nossa “era pós-moderna”? Apegar-se a um enraizamento étnico e cultural enquanto nos deixamos livres para aderir às regras do mercado? Não é à toa que tantos se sentiram identificados com a história. Vejam que o teatro nunca está desprovido de implicações políticas, mesmo quando pretende vestir a roupagem de um para além de todas as ideologias.
Trata-se, definitivamente, de uma peça a ser esquecida e que condiz muito bem com o espaço mumificado do Teatro São Pedro.

*André Susin é Mestre em Filosofia - UFRGS e ator do Grupo Válvula de Escape.

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