“A memória é uma ilha de edição”
A frase do poeta Waly Salomão vale não apenas para as lembranças daquilo que vivemos, mas também do que sonhamos. Utilizo-me do texto do grande poeta Salomão, para discorrer sobre “Savana Glacial”, espetáculo do Grupo Físico de Teatro que esteve na programação do 6º Palco Giratório em Porto Alegre e que circulou em algumas cidades do estado.
Savana Glacial se fragmenta como a mente da personagem Meg, que sofre de perda de memória recente, isolada em seu apartamento com o marido, o escritor Michel. A vizinha Agatha invade a privacidade do casal, criando um jogo de verdades e mentiras, ficção e realidade. A trama envolve ainda um quarto personagem, o motoqueiro Nuno, uma espécie de elo com a realidade, escancarando uma obra aberta com referências à edição cinematográfica, promovendo fusões que desafiam as certezas e as incertezas do que se vê ou se vive.
O espetáculo propõe um jogo entre realidade(s) e ficção. Digo realidade(s), pois no momento em que a realidade se fragmenta, e não temos uma verdade absoluta, qualquer um dos personagens pode estar vivendo uma realidade, uma ilusão ou uma projeção da sua mente. A personagem Meg é quem tem uma mente fragmentada, mas existe uma linha muito tênue entre o que é real e o que é ficção em sua vida, e na vida dos personagens que a circundam, oscilando sempre o foco da trama. Quem está contando a verdade (se é que existem verdades)? Quem está propondo o jogo? O marido realmente mente, ou tudo faz parte de um jogo da vizinha? O que é verdade? O que é ficção? E qual é a fronteira dentro deste jogo?
Logo no inicio, Michel – o marido e escritor – nos informa: “Tudo é ficção”, “Tudo é falso”, “menos a dor, a dor é real”, o que se confirma através da estrutura do espetáculo, onde somos levados a percorrer um quebra-cabeça através da perspectiva de Meg, a esposa que recentemente sofrerá um acidente e está em recuperação. Depois disso, o que ocorre é pura vertigem, onde somos levados a entrar e sair deste jogo proposto, ir de um extremo ao outro, ocorrendo uma espécie de metateatro, colocando o teatro dentro do teatro, em situações, cenas, nos personagens (o escritor, por exemplo, que está escrevendo uma peça de teatro), no corte cinematográfico das cenas, na repetição, nas pausas e silêncios e na suspensão. Tudo dentro de uma estrutura espetacular fragmentada e teatralizada. Refiro-me a teatralização, mas não querendo supor que a teatralização consista simplesmente em opor a realidade da ficção. Não se trata de opor o teatro ao não-teatro. Antes, de tudo é teatro. E “Savana Glacial” é um ótimo teatro e coloca em xeque está relação do que é real, do que é ficção, do que é teatro e principalmente expõe e demarca as fronteiras entre teatro/realidade/ficção mesmo que não saibamos apontar onde está linha fronteiriça.
Quanto à encenação é louvável a utilização da fisicalidade em cena. Percebemos que a pesquisa do grupo é centrada no uso da ação física dentro do teatro contemporâneo, até pelo nome do grupo, mas a proposta do grupo passa longe do clichê, quando falamos na utilização de partituras em cena, tudo está dentro da proposta, ajustado e contextualizado. Ações e gestualidade na medida certa, onde não há espaço para atores que querem demonstrar a sua virtuose física. Pelo contrário, temos um espetáculo movido pela fisicalidade sofisticada, pela repetição e sutileza de ações físicas, mas absolutamente dentro de uma concepção, que eu credito ao diretor que soube explorar a espacialidade, a limpeza das marcas, a utilização de linhas geométricas, o ritmo e harmonia dos signos expostos em cena. Cito a cena da relação sexual do casal Meg e Michel. Extremamente bela e bruta; física e intensa, racional (na execução) e emocional cravando ali o tom do espetáculo, referente à fisicalidade que provoca tensão no espectador. Ainda sobre o espaço cênico, como é bom ver a funcionalidade das luminárias e abajures, dando climas e demarcando espaços essenciais a trama, que somados a excelente trilha sonora de Jamba, que pontua, corta e interfere diretamente no espetáculo. A trilha é uma das responsáveis por me provocar esta linha de tensão juntamente com a estrutura caótica da peça. Assistimos a um espetáculo que se utiliza de poucos recursos para provocar múltiplas possibilidades de leitura frente a trama.
Quanto aos atores, assistimos a um competente time, e falo time, pois o elenco joga junto e isto é maravilhoso de se ver em cena, quando não temos protagonistas e coadjuvantes, mas sim um elenco que te arrebata por inteiro. Teatro de grupo, onde o equilíbrio é evidente. Os quatro atores são ótimos: Andreza Bittencourt, Camila Gama, Diogo Carvalho e Renato Liveira. Diogo Cardoso que interpreta o motoqueiro Nuno, tem uma participação pequena, mas não menos importante, pois é um dos vetores da trama e digo que ele é ótimo, assim como Andreza (pela força em cena), Camila (pela presença) e Renato (pela precisão e naturalidade). Renato Carrera brilha com sua direção precisa e segura e Jô Bilac mais uma vez surpreende e afirma porque é o grande destaque da temporada, justamente em tempos em que o autor não tem seu lugar de destaque no teatro, Jô reaviva a tradição do autor. Viva os dramaturgos!
Acesse o blog do GRUPO FÍSICO DE TEATRO
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