“Árdua e necessária é a labuta cotidiana”.
Foto: Jéferson Vargas |
Como foi o processo/trajetória até tu te tornares uma atriz/diretora?
Bom, eu comecei estudar e conhecer o teatro em 2002 na formação de atores do Ói Nóis Aqui Traveiz, antes disso vi “A Saga de Canudos” da Tribo em uma apresentação na Lomba do Pinheiro (onde morava), mas não tinha a menor idéia que aquilo era teatro e para que aquilo servia. A idéia de entrar na escola da Terreira foi sugerida por um colega que se compadeceu por eu não ter passado no teste especifico em artes cênicas na UFRGS. Em 2002 eu inconscientemente e felizmente dei uma reviravolta na minha vida, meu pai faleceu em agosto de 2001 aos 36 anos e isso foi o fator mais importante para a minha vida de ovelha negra. Completei 16 meses de formação morando na Terreira e completamente envolvida no espetáculo de conclusão de curso “A Alma Boa de Setsuan” de Bertolt Brecht. Meu pai desde sempre foi muito exigente com meus estudos, ele sendo zelador na época e nós nos mudando para a Lima e Silva muito cedo eu tive contato com a diferença de classes, com o espetáculo do dramaturgo alemão juntei os pontinhos e o “destino” então fez sentido. Não larguei mais Brecht e dei continuidade no que meu pai me iniciou, concluindo minha graduação na UERGS em 2008.
Você se sente uma atriz/diretora? Por quê?
Eu confesso que ainda tenho conflitos quanto à profissão, para mim a profissão de atriz está ligada a uma função ética que se reflete na estética, nos meus trabalhos de artista tento manter a minha raiz “chinelona” que é a minha melhor formação, nas dificuldades foi que aprendi os conceitos de coletividade e de resistência e é sobre esse universo que gosto de me referir. Desde 2005 formalizamos o Grupo Trilho que partiu de uma oficina do “Ói Nóis” no bairro Humaitá e lá estamos crescendo e nos profissionalizando, sinto que sou a atriz que quero ser quando percebo que o Trilho resiste e têm a cada dia mais adeptos. Me sinto, quando consigo dar o passo inicial a pesquisa “Estética da Chinelagem” de dá forma a esse Teatro de Resistência, que faz com o que tem, e mesmo assim, fazer um trabalho de qualidade, questionador, dentro e diretamente influenciado pela “chinelagem”, na realidade dos que resistem todos os dias. É importante que a grande parte da população se aproprie do teatro para si, para que mais cedo as “Carolines” possam estar fazendo e fruindo teatro e não só nos 18 anos como aconteceu comigo. Nesses momentos me sinto atriz. Mas o conflito está em aceitar a arte como reflexo de uma vivência, às vezes essa profissão me parece esvaziada, são editais, leis de comércio, marketing pessoal, ainda tenho que me estruturar a isso, nesses momentos me sinto longe de atriz, o que de certa forma não é ruim, tenho minhas diferenças e estou aprendendo com elas.
Atuar ou dirigir ou Atuar/dirigir?
Como boa filha da Terreira, (risos) ... gosto de meter meu dedo em tudo! Tive duas experiências com a direção e me sinto bem, mantenho minha relação colaborativa, ou seja, oriento de fora, mas fomento o debate para que todos estejam construindo o processo junto comigo e daí vou direcionando dentro do que definimos. No “Trilho” todos somos um pouco de tudo. É disso que eu gosto.
Qual a participação de tua família em sua trajetória?
Minha família é o início o meio e o fim de tudo que eu faço no teatro. Minha mãe é muito presente, reconhecida pelos nossos espectadores mais fiéis, meu irmão esteve comigo em “A Decisão”, então também é muito presente e todos se orgulham muito do meu trabalho. É por essa raiz que eu continuo dou todo o crédito a eles.
Explica o que é a "estética da chinelagem"?
A “Estética da Chinelagem” tem algumas características:
- Uma arte que é criada dentro da periferia, um caldeirão popular servido e sorvido pelo “Trilho”;
- A produção, fazer muito com pouco, isso exige uma criatividade que nos tira da comodidade e nos diferencia;
- Os temas que representem esse público popular;
· A luta pelo espaço, o Grêmio Esportivo Ferrinho legitima e acrescenta essa característica do grupo. Por ele que o “Trilho” resiste e ajudamos na legitimação deste como Centro Cultural de portas e janelas abertas para a comunidade.
- E o trabalho colaborativo do grupo;
O que Brecht representa em sua vida/arte?
Ele é minha maior influência, tudo partiu do estudo sobre ele. Ele foi o definidor do meu teatro de militância.
O que é mais difícil para um ator/diretor de teatro?
Fazer teatro não é fácil, pois não é reconhecido como profissão, não se tem direitos como outras profissões, tudo depende de financiamentos, que por conseqüência depende de interesses. E quando se pensa em algo mais engajado é preciso repensar a forma de produzir sem se vender. Como diria Brecht: “Árdua e necessária é a labuta cotidiana”.
Como você (sobre) vive na arte?
Olha, no “Trilho” temos: educadores, professores, produtores e eu que atualmente sou babá, não nos mantemos com o Trilho, o “Trilho” se mantém com nós, nós trabalhos para o teatro do grupo sobreviver.
O que está faltando para que o teatro gaúcho tenha uma estabilidade, qualidade e notoriedade?
Estabilidade políticas culturais interessadas em reconhecer a arte como algo fundamental. Qualidade, que esteja ligada com o que vivemos de fato, que influencie e não seja influenciado e notoriedade vem com tudo isso.
Por que teatro?
Vou citar Brecht mais uma vez: “A arte deve optar, pode se transformar no instrumento de alguns que diante da maioria assumem um papel de deuses ou do destino, ou pode aliar-se a grande maioria, transformando-se em arma a serviço do povo”.
Como é o teu processo de trabalho?
Começo com o estudo teórico que vem em paralelo ao prático, atualmente ele é constante e está ligado principalmente ao estudo do desenvolvimento do teatro político e do teatro dialético, dessa etapa surgem coisas que me atraem para um possível trabalho isso acontece de certa forma inconscientemente, mas que logo vão se afirmando com fatos do dia a dia que eu leio ou vejo nos meios de comunicação. Tudo parte do eu estudo, da razão. Chegando ao objetivo principal vou me focando no método prático para alcançá-lo.
E o grupo Trilho? Como se caracteriza a criação e vivência em grupo? Quais os projetos e influências que norteiam o trabalho de vocês?
O Trilho já foi muitas coisas, no início tínhamos uma vivência muito boêmia, as idéias surgiam em bares, festas e encontros, todos morávamos próximos então tudo surgia dessa convivência, tudo era muito conectado e fluído. A nossa imaturidade fez com que as coisas fossem perdendo o foco, os problemas pessoais dessa mesma convivência influenciaram de modo negativo o trabalho e mesmo a seriedade do estudo teórico não era encarada por todos. Resultado foi à saída de muitos que perceberam que queriam outras coisas. Na faculdade meus colegas Fábio, Giovanna e Bruna, com quem morei e que me apoiaram na conclusão do curso e mesmo na minha continuidade no “Trilho” entraram e deram uma nova cara pro grupo, com eles se acrescentou vertentes do trabalho físico, a iluminação e o que é mais importante: a produção. Começamos a pensar como gente grande e estamos construindo desde então. Nossas principais influências atuais são: Brecht (que resiste), Cia do Latão, Grotowski e Eugênio Barba.
Vivência é um desafio, pois propomos uma relação de aprendizagem dentro e fora da sala de trabalho, sabemos das vidas pessoais até por que ela influência no trabalho, às vezes é difícil, mas é gratificante, pois gera o aprendizado o “aprender a estar de acordo”, também de Brecht, que tanto prezamos quando levamos ao espectador. E claro mantemos a boêmia de forma moderada pois também é necessária e faz parte da Estética da Chinelagem ...(risos).
As coisas estão fluindo como havias planejado? Aonde tu queres chegar?
As coisas estão fluindo sim. Estamos trilhando para um grupo profissional que seja antes de tudo necessário que seja combativo e questionador, que nos reconheçam e nos respeitem assim como a cada dia aprendemos a respeitar os nossos colegas. Eu quero estar sempre crescendo e aprendendo com o teatro e que isso continue influenciando os próximos a mim, o que de fato tem acontecido desde 2002 quando entrei. Hoje tenho uma mãe politizada, irmão e amigos que buscam isso que se influenciaram pela minha causa e que agora é a causa deles. E, claro, quero poder ganhar com isso, afinal isso traz retornos e crescimentos que precisam ser financiados.
Alguma vez já pensou em desistir?
Quase sempre penso. Desde 2002 esse teatro social se tornou prioridade mor, nem amores, nem dinheiro, nada é mais importante, mas tem dias que eu canso, que eu percebo que é um caminho tortuoso. Há dois anos sou casada e meu marido tem dois filhos lindos, me pego em conflito de estabilidade financeira e nessa bendita ordem capitalista, em que se precisa de dinheiro para existir, se precisa pensar em como ganhar o dinheiro para continuar com as causas sociais, isso cansa. Mas acho que desistir não vou, se fosse fácil teria desistido antes, exatamente por ser na desordem que continuo. Resultado: me privo de muitas coisas, mas em cena respingando o suor na cara atenta percebo que isso é o certo, nisso me sinto inteira e os que me amam apóiam, incentivam ou vão embora e outros vêem. É o que eu escolhi e acredito que não é uma causa egoísta e individual, ela se multiplica e faz a diferença.
Qual o papel da universidade na formação de um artista?
A Uergs fez a diferença, ela me instrumentalizou para o que eu precisava, é o momento em que tu ensaias o teatro, em que se aprende de tudo. A educação e arte são fundamentais para o desenvolvimento de uma sociedade. Mas o teatro mesmo se faz fora dela, ela é a base, a formação.
Quais profissionais gaúchos e nacionais tu destacaria, que contribuem para um teatro mais forte e engajado? (Ator/atriz, diretores, teóricos, etc...)
Paulo Flores é o meu pai, foi ele que me preparou para isso tudo, ele e o “Ói Nóis” que é inegável referência nesse sentido de engajamento. Tem a “Cambada de Teatro Levanta Favela”, que é um grupo novo mas que propõem um trabalho em ação direta que é diferenciado.
O que te faz ESCAPAR tratando-se de teatro?
Não sei se entendo muito bem a pergunta, mas se entendi, o que me faz escapar é a constante reflexão crítica que faço de mim e dos meus atos.
Qual a tua opinião a respeito das leis de incentivo do estado, da ação do ministério da cultura em relação a incentivos as artes cênicas e dos prêmios outorgados a "melhores do ano", por exemplo?
Bah!!! Como não ser tão radical, eu respeito o trabalho dos colegas vou assistir, às vezes gosto, às vezes não. As leis de incentivo parecem meio panela, precisa ter nome pra conseguir, o que de certa forma pesa, pois se trata de dinheiro público e tu não sai distribuindo pros João ninguém da vida, é preciso ter visibilidade e credibilidade. O que eu acho que falta é justamente a reflexão crítica do financiamento trata-se de dinheiro público e se tratando de teatro muito pouco se reverte ao público, entendendo-se público essa maioria que não vai ao teatro. Falta uma classe artística que seja menos competitiva e mais colaborativa, tá tudo muito comércio, muita burocracia. Me lembro de ter assistido a peça “Van Gogh”, acho que em 2006 se não me engano, que ao final recebíamos um folheto explicando como fazer para ser artista em Porto Alegre: RG, CPF, CNPJ, entre outros documentos e é isso.
Quanto aos melhores do ano, Isso parece ser o verdadeiro objetivo de se ser artista no Rio Grande do Sul, parece que é pra isso que se trabalha no fim das contas. Eleito por quem? Quem é o júri popular? Nossos colegas? Nossos parentes e amigos? Muito pouco de popular, diga-se de passagem. Tem trabalhos de boa qualidade que merecem receber seus prêmios, tem trabalho que devem ser reconhecidos, só espero não ter que me vender para chegar a esse reconhecimento, o prêmio dever se por merecimento. E o que dita quem merece o que? O que se assiste e o que não se assiste? Parece que fica tudo nesse mesmo meio de amigos e camaradagem... É o grande espetáculo. Não me envolvo muito nisso, pois nesses momentos acho tudo muito fútil e fora do meu universo. Mas esperamos reconhecimento que pode vir por respeito ao nosso trabalho e não por um troféu, tento me manter na minha, respeitando a dos outros.... Paciência.
O que tu tens assistido e que tem te provocado e o que tu tens abominado nas artes cênicas?
Eu assisti “O Cantil” no “Poa em Cena”, do Teatro Máquina, de Fortaleza, e tive a oportunidade de fazer a oficina com o Grupo, sobre o distanciamento brechtiano, ambas as experiências foram maravilhosas, é bom ver outras pessoas seguindo rumos parecidos e te complementando. Foi à experiência mais importante de 2010 com certeza, e olha que me provocou de uma forma muito técnica (que é difícil), mas uma técnica que me apetece me acrescentou e foi uma relação muito generosa. As que abominam não comento, são as vazias, as que pra mim não foram nada...teve algumas.
Futuro?
Pensemos no presente, tem desafios grandes por vir.
Tem algum recado especial, ou mensagem para deixar por aqui?
Obrigada ao Escape pelo convite. Que continuemos escapando e trilhando para uma arte mais reflexiva e colaborativa, merdão pra nós. E como dizemos aqui antes das apresentações: “Vemmmmmm Dio! Brecht! Brecht! Brecht!
Abraços e saudades.
Caroline Falero
Carol adorei a etrevista vc merece tudo que começa a colher vc lutou por isso um dia veremos vc brilhar no teatro "bibi ferreira"ai a familia vai se reunir e fazer aquela festa embaixo da lona!Beijos parabéns
ResponderExcluirJANAINA FALERO