terça-feira, 28 de setembro de 2010

“JOGO DE CENA” - CINEMA PARA OUVIR




Sempre pensei que documentário é aquele tipo de filme em que nos dispomos a acreditar, pois o que veriamos seria a mais pura realidade, porém editada. Confesso que esse estilo de filmes não me chamavam muito a atenção, pois era só eu ler a descrição “documentário” já torcia o nariz, por puro pré-conceito mesmo ou talvez pelo fato das experiências anteriores com este gênero não serem muito agradáveis, pois associava a documentário, uma gama de imagens sobre determinado assunto real com uma voz em “off” ou a presença de um narrador imparcial expondo sobre determinado assunto. Enfim, eis que acabo de assistir a “Jogo de Cena” de Eduardo Coutinho, o que muda radicalmente este meu pensamento, e que de certa forma me levará a procurar mais sobre documentários. JOGO DE CENA é um dos melhores filmes que já assisti na minha vida, é simplesmente simples e maravilhoso. Quem não viu vale a pena ver, para conhecer as diversas histórias da vida real dessas mulheres guerreiras e fantásticas. Para quem gosta do gênero, esse filme é de apaixonar. Eu me apaixonei!

A proposta é muito simples: Atendendo a um anúncio de jornal, oitenta e três mulheres contaram suas histórias de vida num estúdio. Em junho de 2006, vinte e três delas foram selecionadas e filmadas no Teatro Glauce Rocha. Em setembro do mesmo ano, atrizes interpretaram a seu modo, as histórias contadas pelas personagens escolhidas. Mas aí é que reside o trunfo deste projeto, pois estamos simplesmente assistindo mulheres contando suas histórias de vida, histórias tristes, dramáticas, poéticas, absurdas e alegres, histórias REAIS. O que teria demais nisso: nada! O maravilhoso é justamente quando Coutinho coloca atrizes para contar essas histórias, e ao mesmo tempo em que assistimos a versão da pessoa que narra e vivenciou a história, assistimos também atrizes contando a mesma história. É ousado, poético, simples e lindo. Mas Coutinho não para por aí não. Ele consegue enganar o espectador quando coloca atrizes desconhecidas do grande público para contar histórias de outras mulheres. Às vezes eu pensava que estava ouvindo a história de sua autora, digamos, mas não, era uma atriz! Que esfacelamento do olhar, que sacada triunfal. Poxa, isso é Brecht, puro distanciamento! O diretor acaba trabalhando justamente sobre detalhes, como o que as pessoas dizem e o que as pessoas são. Ele consegue nos mostrar uma nova construção do olhar, pois quando vejo a Andréia Beltrão (ma-ra-vi-lho-sa como sempre), quando vejo a Marília Pêra, a Fernanda Torres, sei que elas estão contando uma história, sei que são atrizes exercendo suas profissões, e, portanto sei que é ilusão, é cinema, é teatro, é Brecht, mesmo sem uma construção de ficção, elas criam ficção, é metalinguagem, constroem outros que não são elas. Mas por exemplo, a primeira cena é feita pela atriz Mary Sheyla, contando uma estória que ela mesma vivenciou, e ali eu não sei o que é? É ficção, é cinema, é teatro ou é real? Inclusive esta mesma atriz, representa um trecho da tragédia “Gota D’água” de Chico Buarque e me faz “babar”, sério, pois com o mínimo ela consegue o máximo, consegue tudo (temos que pensar sobre isso no teatro), é de chorar a cena e sua história de vida. Mas durante o desenrolar do filme fico pensando, será que ela estava realmente contando a sua história ou estava interpretando a história de outras? É justamente essa a lógica, ou melhor, essa não-lógica do filme, que eu admiro e aplaudo em pé (Soube que quando exibido no Festival de Gramado em 2007, o público realmente aplaudiu em pé, ovacionando o filme). Minha crença foi posta a prova até o limite, “crer ou não crer eis a questão”, se era real ou ficção, mas o que importa é romper com esse limite e embarcar no fluxo das histórias, rir, chorar, ter compaixão das artimanhas da vida, ou da representação, já nem sei mais se eu sou eu, ou se sou um personagem de mim mesmo.  
Nesse jogo, jogamos todos nós. Jogam as mulheres, atrizes ou não com um misto de teatro e cinema, (cinema-teatralizado!), que exige de cada uma a melhor performance. Joga Coutinho que também é um fingidor quando entrevista as atrizes, tentando encontrar o mesmo tom quando entrevistou as mulheres. E jogamos nós, espectadores com a dúvida, a surpresa e o jogo exposto á nossa percepção.
O documentarista Coutinho acaba criando um longa que trata de inúmeros assuntos que vão desde as atrizes comentando o método de memória emotiva de Stanislavski (o mais famoso teórico sobre direção de atores) até a exclusão social, preconceito, e gravidez na adolescência e, principalmente, discussões sobre relações familiares. Muitos depoimentos se confundem, até mesmo as atrizes famosas contam suas histórias e as menos famosas se perdem por entre as anônimas, de forma que nunca temos certeza de quem eram as atrizes e quem eram as entrevistadas. Estas acabam mexendo com as atrizes de maneira que elas nunca conseguem ser indiferentes ao texto.
 Quanto as atrizes, tem as mais conhecidas temos as veteranas Marília Pêra, Andréa Beltrão e Fernanda Torres, que, aliás, tem um dos melhores momentos do longa, insatisfeita com sua interpretação e inconformada em não conseguir alcançar o tom certo da "personagem". Beltrão (que eu admiro e muito, o filme “Verônica” é muito bom), também tem momentos ótimos durante seu depoimento/interpretação, quando começa a chorar no meio da entrevista e, ao final desta, revela que não tinha o choro programado. A busca em seus entrevistados por intimidades, rendem lições, derrotas, amores e vitórias. Ninguém penetra melhor na alma de um entrevistado de forma que a imagem sirva apenas como um elo entre o espectador e os depoentes. O diretor está interessado em seus discursos, que nos atingem com tamanha emoção, incomum ao gênero documentário. Eduardo Coutinho nos proporciona um prazer único: ouvir o cinema.
Jogo de Cena é o décimo longa-metragem de Eduardo Coutinho, um dos maiores documentaristas brasileiros em atividade. Depois de um início de carreira dividido entre a ficção e o documentário, Coutinho optou pelo segundo.  Mais recentemente, iniciou uma fase muito produtiva com a realização seguida de cinco filmes em seis anos: Santo Forte (1999), Babilônia 2000 (2000), Edifício Master (2002), Peões (2004) e O Fim e o Princípio (2005). A solidez do método de Coutinho e sua sensibilidade para ouvir pessoas comuns são fruto de laboriosa reflexão sobre o seu ofício ao longo de inúmeros documentários em vídeo realizados nas décadas de 80 e 90, entre os quais se destacam Santa Marta: Duas Semanas no Morro(1987) e Boca de Lixo (1992).


Thrilher do filme.

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