segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: FERNANDO ARRABAL Parte 3


A PAIXAO SEGUNDO ARRABAL


No inverno de 1955, Arrabal instalou-se na Casa da Espa­nha, na Cité Universitaire de Paris. Luce Moreau, uma estudante francesa, passou a ser sua companhia constante. Em fevereiro de 1956, graças a ela, Arrabal se transferiu da Cité Universitaire para o sanatório de tuberculosos de Bouffémont, onde ficaria um ano e meio.
Fernando Arrabal considera o período em Bouffémont um dos melhores de sua vida: “Conservo as melhores recordações do sanatório. Tinha todo o tempo livre para mim, o pessoal era bom e a comida farta”. Em Bouffémont escreveu quatro peças:  Fando e Lis (Fando et Lis), Cerimônia para um Negro Assassinado (Cérémonie pour un Noir Assassiné,), O Labirinto (Le Laby­rinthe,) e Os Dois Carrascos (Les Deux Bourreaux.). No fim de sua estação no sanatório, Luce encaminhou o texto de O Triciclo a Jean-Marie Serreau que, fascinado com Arrabal, comprome­teu-se a publicar todas as suas obras.
Animado pela perspectiva dos 300 francos mensais que Ser­reau se propôs a pagar, Arrabal entregou-se freneticamente à ta­refa de escrever. Em dois anos, produziu oito textos: Cemitério de Automóveis (Le Cimetière des Voitures), Orquestração Teatral (Orchestration Théatrale), Os Quatro Cubos (Les Quatre Cubes,), A Primeira Comunhão (La Communion Solennelle), em 1957, e no ano seguinte, Concerto Dentro de um Ovo (Concert Dans un Oeuf); Guernica (Guernica) e A Bicicleta do Condenado (La Bi­cyclette du Condamné) foram escritas em 1959.
Quando Serreau montou a primeira peça de Arrabal, Pique-­nique no Front, o nome do escritor já era conhecido nos meios intelectuais parisienses. Serreau via no teatro de Arrabal a mesma tendência para o absurdo que marcava a obra de Beckett, Ionesco e outros dramaturgos. Apesar da admiração pelos autores de van­guarda, Arrabal afirmava que suas obras tinham horizontes mais selvagens, menos especulativos e mais espetaculares. Longe de qualquer preocupação teórica, colhia a matéria teatral dentro de sua memória, de seus medos e pesadelos. Obcecado por uma infância prisioneira, Arrabal criava personagens sem idade defi­nida, usando uma linguagem e uma lógica que não faziam parte do mundo dos adultos. São frequentes os jogos de palavras, o nonsense, a violência instintiva, as imagens colhidas no incons­ciente. Arrabal diz que escreve tudo o que lhe passa pela cabeça, que não revê o que cria, nem se detém numa palavra ou frase para refazê-la. Não é incomum que suas peças girem em torno do mesmo tipo de personagem, temas e situações, infatigavel­mente repetidos, como se o autor tivesse um compromisso muito maior consigo mesmo que com o público.  “Eu escrevo para mim, como para me drogar. Se o público não gosta, tanto pior. É um jogo, uma exaltação.”
Geralmente o herói de Arrabal é ambíguo. Tirano e escravo, bom e cruel, inocente e culpado, vítima e carrasco, vive sempre à margem de um mundo ordenado que ele não compreende. Seu espaço, a terra de ninguém; sua condição, a miséria. A maior ameaça que paira sobre ele vem do mundo exterior, expressa atra­vés da repressão brutal e anônima que surpreende seus valores antisociais e sua liberdade, acabando por imobilizá-lo. Nessa situação, a personagem feminina de Arrabal é mais lúcida que o homem, realizando a mediação entre o herói e o mundo opressor. A mulher aparece sempre sob um tríplice aspecto de mãe-criança­-prostituta, plena de instintos e intuição. Escrava ou déspota, ela é a fonte de todas as possibilidades de iniciação do homem. E toda a dramaticidade de Arrabal vem do jogo das relações entre as personagens e das múltiplas combinações que seus caracteres ambíguos lhes permite.
Em Fando e Lis, dois adolescentes reescrevem a história de Romeu e Julieta. Seu amor é negado não pelas famílias, mas por sua condição física. Fando conduz Lis, que é paralítica, dentro de um carrinho de criança. Sem poder possuí-la fisicamente, ele transforma seu desejo sexual em violência. Mas Lis, a inválida, consegue encontrar certa fascinação no sofrimento, e, quando do­mina a situação, é capaz, por seus mutismos, de levar Fando ao desespero. As inversões brutais na relação senhor-escravo são um dos aspectos mais notáveis nas peças de Arrabal.
       Fidio e Lilbé de Oração (Oraison), após matarem uma criança, decidem se tornar bons e puros; para isso, lêem o Velho e o Novo Testamento. Mas a descoberta da história de Jesus os desconcerta.  “O menino ajudou seu pai que era carpinteiro a fazer mesas e cadeiras. Como ele era muito sábio, a mãe o abraçava muitas vezes. (...) Depois ele se fez homem e o mataram: eles o crucificaram com cravos nas mãos e nos pés. Você se dá conta? Essa peça. escrita em 1957, anuncia a idéia de Cemitério de Automóveis, produção de 1960, onde Emanou, o herói, também é tomado por irresistível desejo de ser bom e acaba como Cristo, traído e assassinado.
A encenação mais famosa de Cemitério de Automóveis foi realizada em 1966 pelo diretor argentino Victor Garcia. Na mon­tagem que ele apresentou pela primeira vez no Festival de Dijon e posteriormente em Paris e São Paulo. Cemitério de Automóveis era apenas uma das quatro peças de Arrabal integradas às várias seqüências do espetáculo. Funcionando como prólogo, estava Oração, logo a seguir vinha o 1º ato de Cemitério de Automóveis, depois a ação de Os Dois Carrascos, sucedida pelo 2º Ato do Cemitério, o texto de Primeira Comunhão e, finalmente, o epílogo da peça principal.
Num cemitério de pesadelo, entre sucata e carcaças de automóveis, Fidio, personagem de Oração, ao descobrir a história de Jesus, prepara os espectadores para Emanou, de Cemitério de Automóveis, uma espécie de Cristo da era do jazz, que tem 33 anos e dois amigos, Topé (Judas) e Fodère (Pedro).
Na intersecção de Primeira Comunhão, nos momentos finais de Cemitério de Automóveis, Victor García procurou não romper com a ação da peça mestra. Escrita em 1958, Primeira Comunhão é praticamente um longo monólogo de uma avó que se di­rige à netinha que vai comungar pela primeira vez, discorrendo sobre as virtudes da ordem e da limpeza e as vantagens de uma vida cristã. Enquanto a avó discursa para uma menina desinteres­sada, prepara-se paralelamente o suplício de Cristo-Emanou.
Após uma paródia das cenas da paixão de Cristo, nas quais Judas-Topé beija e trai o herói e Fodère-Pedro o renega três vezes, Emanou é crucificado numa motocicleta, mas, ao contrário de Jesus, não tem esperanças de ressurreição.
A violência de Cemitério de Automóveis foi acentuada pela ação de Os Dois Carrascos. De cunho autobiográfico, essa peça conta a história de denúncia e morte, na qual uma mãe delata o marido  “culpado de ter comprometido o futuro dos seus filhos” em atividades subversivas,  Maurice e Benoit, seus filhos, tomam posições radicalmente opostas em relação ao gesto que levaria o pai à prisão, onde ele seria torturado e morto. Enquanto Benoit se coloca ao lado da mãe,  Maurice repele com horror a delação. Mas Françoise, a mãe, no papel da grande mártir, consegue que Maurice lhe peça perdão, pois acima de tudo foi pensando neles que assim procedeu. Sem muita convicção e quase chorando, o filho   “rebelde”   abraça a mãe. Houve quem visse na personagem de Maurice o símbolo de um povo humilhado, mas não vencido.



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