OS CAMINHOS DA LIBERDADE
Fernando Arrabal nasceu em Melilla (Marrocos espanhol), no dia 11 de agosto de 1932. Seu pai, Fernando Arrabal Ruiz, era comunista e foi preso em 1936, durante a Guerra Civil Espanhola. Durante seis anos percorreu as prisões de Ceuta, Ciudad Rodrigo e Burgos. Em Ceuta tentou o suicídio; de Burgos, fugiu, e nunca mais foi visto.
Em 1959, na novela autobiográfica Baal-Babilônia, Arrabal refere-se ao pai e à importância que teve em sua vida: “Um homem enterrava meus pés na areia. Era na praia de Melilla. Lembro-me das suas mãos em minhas pernas. Eu tinha três anos. Enquanto o sol brilhava, o coração e o diamante se estilhaçavam em inúmeras gotas de água. Perguntam-me sempre quem mais me influenciou, quem admiro mais, e então, esquecendo Kafka e Lewis Carroll, a terrível paisagem e o palácio infinito, esquecendo Gracian e Dostoiévski, os confins do universo e o sonho maldito, respondo que foi alguém de quem me lembro apenas das mãos nos meus pés de criança: meu pai”.
Sua mãe, Carmen Teran Arrabal, mulher muito religiosa e devotada rigidamente às obrigações domésticas, envergonhava-se do marido ateu e “vermelho”, omitindo a Fernando e seus dois irmãos todas as informações sobre o marido. Quando Arrabal Ruiz foi julgado, em março de 1937, e condenado a trinta anos de prisão, Carmen não fez o menor movimento no sentido de ajudá-lo a suportar a prova. Escrevia-lhe cartas duras e reprovativas, que teriam provocado no marido a tentativa de suicídio no presídio de Ceuta. Carmen nunca procurou entender as idéias do marido e guardou consigo a magoa de ter que assumir os filhos sozinha, trabalhando e escondendo dos vizinhos que Arrabal Ruiz era um preso político. Chegou-se mesmo a aventar a possibilidade de que teria sido ela a denunciá-lo à Falange. Em Os Dois Carrascos (Les Deux Bourreaux), o próprio Arrabal sugere a delação, mas, em 1956, quando escreveu essa obra, seu rancor contra a mãe ainda estava muito vivo.
Em 1941, já vivendo em Madri com os três filhos, Carmen foi informada de que o marido desaparecera da prisão de Burgos. Na noite da fuga, havia mais de um metro de neve na cidade e Arrabal Ruiz, estava vestido apenas com um pijama. Mas nem sua morte nem sua sobrevivência puderam ser provadas. Muitos anos depois, Arrabal tentou localizá-lo, conversando com guardas e alguns de seus companheiros, mas nada conseguiu apurar. Quando foi notificada da fuga do marido, Carmen reuniu os filhos comunicou-lhes simplesmente que o pai falecera. Aos 16 anos, vasculhando documentos da família, Fernando inteirou-se da verdade e o choque da notícia levou-o a romper com a mãe. Durante cinco anos não falou com ela.
Nessa época, Fernando estava cursando a Academia Militar, na qual ingressara em 1947, convencido pela família a fazer carreira no Exército. Como seu espírito militar era nulo, trocava as aulas por sessões de cinema, empolgando-se com os irmãos Marx e Chaplin. À noite, lia muito: Lewis Carroll, Dostoiévski, Kafka e Proust.A vida era então, segundo ele, terrível.
Baixinho, mordaz, exótico, perambulava pelas ruas e ia acumulando sua raiva de tudo e de todos. “Odiava a Espanha porque na rua todos caçoavam da minha estatura: odiava minha mãe e minha família porque eram franquistas.” A revelação sobre o pai acelerou sua saída da Academia Militar.
No outono de 1949 partiu para Tolosa, indo trabalhar numa fábrica de papel. Durante dois anos trabalhou, leu, escreveu poemas, repensou a vida, sua relação com a família e a religião. Gradativamente rompeu as amarras.
Ao voltar a Madri, em 1962, para fazer o curso de direito, a família recebeu-o reticente. Fernando não ia mais a missa, não visitava os padres do colégio de Santo Antão, onde estudara, não se confessava nem comungava. E continuava sem falar com a mãe. A noite, trancado no quarto, escrevia, sabendo que à hora das refeições as tias fariam as zombarias costumeiras: “Vejam só Fernandito escritor!”
Foi nesse período que escreveu sua primeira peça de teatro, Piquenique no Front (Los Soldados), que ao ser montada em Paris, em 1959, seria considerada por alguns críticos “uma verdadeira jóia surrealista”. O cenário é a guerra. As personagens são um soldado, que recebe no front a visita de seus alienados pais, que ali vão fazer um piquenique, e outro soldado, inimigo, que é feito prisioneiro em pleno lanche. Do confronto entre os horrores da guerra e a inconsciência dos visitantes e participantes nasce um cômico absurdo, mais notável ainda porque o autor, ao escrever a peça, não conhecia nem os dramaturgos de vanguarda. nem o teatro surrealista.
O Triciclo (Los Hombres del Triciclo) deu a Arrabal, em 1953, o segundo prémio no Concurso da Cidade de Barcelona e foi a única das suas peças a ser montada na Espanha. Em 1958, o Dido Pequeño Teatro de Madrid levou-a à cena sem o menor sucesso. O Triciclo era a primeira peça na qual Fernando Arrabal apresentava uma linguagem, personagens e temas que seriam freqüentes em seu teatro: marginais que infringem inconscientemente uma ordem estabelecida e suas reações trágicas, cômicas ou inocentes, diante de uma realidade incompreensível.
Quando escreveu O Triciclo, Arrabal acabava de descobrir os autores de vanguarda nas montagens tímidas de Josefina Sanches Pedreño. No Dido Pequeño Teatro, essa companhia era a única na Espanha a arriscar alguma coisa de Ionesco, mesmo sabendo que na platéia havia poucos espectadores realmente interessados nesse tipo de teatro. Mas, no árido panorama da vida intelectual espanhola, o Dido era o único lugar onde Arrabal se nutria de esperanças. Era bem possível que sua linguagem teatral, até então inédita, fosse um dia compreendida.
O prêmio por O Triciclo foi uma bolsa de estudos em Paris, onde durante três meses Arrabal poderia estudar teatro. O tempo era muito breve, mas para o dramaturgo estava muito claro que em Madri não havia condições para escrever.
Em 1955, sem saber que estava tuberculoso, concretizou seus planos de partida. A família, inconformada com sua decisão, não lhe deu o menor apoio; na hora da despedida os gritos da mãe foram ouvidos por todos os vizinhos: “Valha-me Virgem Maria! Meu filho há de pagar!”
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