domingo, 22 de janeiro de 2012

DRAMATURGIA EM FOCO: CAIO FERNANDO ABREU


Por Luiz Arthur Nunes
Caio Fernando Abreu é reconhecido como um dos ficcionistas mais brilhantes da literatura brasileira contemporânea. Poucos sabem, porém, que a ficção que escreveu não foi apenas narrativa, épica: contos, novelas e romances. Caio também cultivou a literatura dramática. Não me refiro aqui às várias adap­tações feitas para a cena a partir de suas histórias, mas sim às peças de teatro, as que ele compôs diretamente para o palco, o palco que ele tanto amava. O signi­ficado e a repercussão da parte conhecida de sua obra eclipsou essa segunda vertente, menor, mas não menos importante.
Caio sempre adorou teatro, via tudo, conhecia todo mundo da classe tea­tral. No entanto, foi mais do que um espectador aficionado: tornou-se um ho­mem de teatro.
Não de imediato, porém. Nos fins da década de 60 era apenas o amigo queri­do da nova geração de atores e diretores de Porto Alegre, a sua geração, que se iniciava — assim como ele na literatura — na descoberta apaixonada de uma forma de expressão. Caio era dos que estavam sempre junto, nas salas de ensaio, nas salas de espetáculo, nas mesas de bar onde o assunto era teatro, teatro, teatro. Naquela época, cursávamos o CAD, o Curso de Arte Dramática da Faculdade de Filosofia da UFRGS. Não demorou muito e Caio tornou-se nosso colega. Não concluiria o curso, assim como também não concluiu o curso de Letras. Avesso à rigidez de programas, prazos e currículos, preferia passar pelas coisas como num vôo, num mergulho sem método, mas nem por isso menos alto e profundo. Lembro-me dele numa peça infantil da escola, fazendo o papel de um vovô com uma barba branca de algodão...
Aliás, é interessante a significação que teve o teatro infantil para este solteirão empedernido que detestava crianças (a quem costumava chamar de “crionças”, principalmente quando sua algazarra atrapalhava seus preciosos momentos de criação). Ele excursionou vários meses pelo Rio Grande do Sul atuando na montagem do Serafim-fim-fim de Carlos Meceni, junto de Suzana Saldanha, Nara Kei­serman e José de Abreu. A peça era uma recriação do Chapeuzinho Vermelho, e Caio fazia justamente o papel do... autor da história recontada. Algum tempo depois, ele foi autor de verdade de um texto para “crionças”, A Comunidade do Arco-Íris, estreada em Porto Alegre sob a direção de Suzana Saldanha.
Como vêem, embora bissexto, Caio foi autor, conheceu o palco por den­tro. E bom ator. A última vez que comprovei esse fato foi quando da leitura que ele fez de sua peça recém-concluída: O Homem e a Mancha, na casa do ator Carlos Moreno, para quem a escrevera de encomenda. Essa leitura ficou-me na memória como uma, uma deliciosa e tocante performance de comicidade e lirismo. Performance que, fiquei sabendo, repetiu publicamente em duas oca­siões, e com enorme sucesso, quando, já doente, voltara a morar em Porto Alegre.
Caio e eu pisamos juntos o mesmo palco em 1976, no espetáculo Sarau das 9 às 11, realização do Grupo de Teatro Província, dirigida por mim. Então fomos parceiros não só “nas tábuas”, ‘como também “de pena”. O Sarau era uma peça de esquetes, e nós os escrevemos a quatro mãos. O último deles, A Maldição do Vale Negro, foi retomado e ampliado dez anos depois para ser montado como um espetáculo completo. Essa recriação, uma encomenda do Teatro Vivo de Irene Brietzke, foi feita novamente em colaboração, durante os feriados de car­naval, no apartamento de Caio na Haddock Lobo em São Paulo. Foram quatro dias de gargalhadas, latinhas de cerveja e pizzas por telefone. E muito café e os milhares de cigarros que ele fumava...
Fabricar uma obra de arte a dois é em princípio algo dificílimo. Mas não para nós. Tinha sido fácil nos esquetes do Sarau e continuou sendo na segunda versão da Maldição. Via de regra, redigíamos juntos: a frase que um inventava puxava a frase do outro. Mas podia acontecer também de um escrever uma cena e do outro retocá-la. Interferíamos reciprocamente em nossas invenções sem nenhum constrangimento. Que sintonia era essa? Era como brincar juntos. Graças a montagem carioca de A Maldição do Vale Negro, dividimos o Prêmio Moliére de melhor autor de 1988.
Uma outra vez em que brincamos de teatro foi quando precisei de textos para um novo espetáculo de esquetes: de Colagem, 1977. Caio produziu cinco diálogos curtos. O primeiro deles, o Diálogo do Companheiro, uma pequena obra-prima, eu refiz repetidas vezes e de variadas formas em outros espetáculos-colagem. Tamanha a minha “obsessão” por esse texto, que ele o dedicou a mim na abertura de seu livro de contos Morangos Mofados. Uma outra dessas cenas avulsas, O Aborto, acabou fundindo-se à peça de minha autoria, Love, Love, Love, montagem de 81. “Fundiu-se” é a palavra, não fôssemos nos dramaturgos siameses. Todos esses diálogos de uma página ou menos, serviram-me também de excelente material de exercício em minhas aulas de teatro.
A primeira investida independente de Caio na dramaturgia foi com Pode ser que seja só o leiteiro lá fora. Não saberia precisar a data em que foi escrita. Segu­ramente logo após os anos que ele viveu em Londres, nos inícios dos 70, experiência que aparece transfigurada na peça. Só sei que a obra foi premiada num concurso do então SNT (Serviço Nacional de Teatro) e selecionada para leituras públicas em todo o Brasil. A de Porto Alegre, no Teatro de Arena, foi dirigida por mim e musicada pelo também saudoso Carlinhos Hartlieb. Pouco tempo depois, a Censura Federal a interditou em todo o território nacional.
As obras teatrais de Caio Abreu às quais o meu nome não esteve de nenhuma forma associado (fora o caso de seus contos e novelas teatralizados) são a já citada Comunidade do Arco-Íris, Zona Contaminada, montada pela primeira vez no Rio de Janeiro por Gilberto Gavronski, e a admirável adaptação para a cena, que ele fez do romance Reunião de Família, de Lya Luft, que Luciano Alabarse teve o privilégio de encenar em Porto Alegre. Esse trabalho é a melhor comprovação de que Caio foi dramaturgo de fato e não um narrador por diletantismo pondo em diálogo suas histórias. Ele sabia e dominava a diferença de gêneros. Na operação por que passou em suas mãos o livro de Lya Luft, o épico vira dramático, o contar vira representar, a narrativa vira cena.
Curiosamente, não assisti nenhuma dessas montagens. Por impedimentos normais, coisas da vida. Minha analista com certeza detectará algum ciúme meu vendo Caio fazer teatro com “outros”. Afinal, na maior parte da sua produção teatral eu estive presente. Não há motivo para ciúmes, mesmo inconfessados. A parceria interrompida por um tempo já foi retomada. Sua última peça, O Ho­mem e a Mancha, o Garoto Bombril não quis realizá-la, e ela terminou nas mi­nhas mãos e nas do ator Marcos Breda, outro amigo seu do coração. Quando a recebemos de um Caio já debilitado, ele nos disse: “Façam logo para dar tempo de eu assistir”.Não faz um ano que Caio nos deixou. No momento em que ponho ponto final neste prefácio, estamos a uma semana da estréia de O Homem e a Mancha. Será no Theatro São Pedro. Certamente ele não vai perder.

Porto Alegre, 14 de novembro de 1996.

Luiz Arthur Nunes

Prefácio do texto Pode ser que seja o leiteiro lá fora.

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