O TEATRO ÉPICO
Brecht sempre partiu do princípio de que o homem é alterável na medida que conduz e é conduzido pelo processo histórico. Encontrar um mecanismo teatral capaz de mostrar ao público seu papel dentro desse processo passa a ser então um objetivo do autor.
lnicialmente, ele se contrapõe a todos os grandes teóricos do teatro clássico tradicional, no qual a ação é o produto de conflitos de interesses e sentimentos entre as personagens. De acordo com isso, toda ação deveria necessariamente conduzir a um desenlace, por meio do qual seria estabelecida uma determinada ordem. Para o filósofo Hegel (1770- 1831), que advogava essas concepções, “. . . o conflito principal, aquele em torno do qual gira a obra, deve encontrar no desenlace desta seu apaziguamento definitivo. . .” já que “. . . o público tem o direito a exigir que, de forma trágica ou cômica, a ação dramática culmine na realização do racional e do verdadeiro em si”.
Para o teatro clássico, todo ele derivado das concepções da poética de Aristóteles (384-322 a.C.), a ação dramática deve ser dirigida à instauração de uma ordem válida para todos e que apresenta um valor simbólico. O palco é a voz e o reflexo da verdade da sala. As obras expressionistas tinham utilizado esse tipo de perspectiva teatral. Ao criticá-las, Brecht afirmou que, nelas, a ação teatral termina por perder seu valor simbólico em proveito de declarações ideológicas individuais que valorizam o particular contra o geral. Para ele, quando os expressionistas falavam do homem em si, procurando simbolizar toda a humanidade num herói, estariam apenas tratando dos destinos de indivíduos excepcionais.
Mas, por outro lado, existia também outro tipo de dramaturgia, interessado em dar peso e realidade ao mundo. A ação de suas obras é definida como estritamente sócio-econômica, e o homem nao seria mais nada que o produto da sociedade em que vive. A verdade estaria no palco, pronta para ser aceita ou rechaçada pelo espectador. A opinião de Brecht sobre esse tipo de teatro realista ficou bastante clara quando participou, por volta do ano de 1934, das discussões a respeito do realismo na literatura e a arte engajada na Rússia. Discordando do filósofo Lukács, que defendia o realismo como um sistema estético em que a significação política está estritamente ligada ao emprego de certos métodos de expressão, Brecht afirmou que tal concepção pecaria pelo formalismo: o realismo na arte não se colocaria como um conceito artístico ou estético, mas sim como uma exigência política de demonstração da realidade.
Na verdade, ao participar dessas polêmicas, Brecht estava duvidando do valor da representação simbólica de um conflito e da exigência de uma conclusão definitiva no final do drama. Para ele, o importante no teatro era que este retornasse à vida social como uma entidade viva e até contraditória, capaz de conter um valor didático.
Entretanto, esse valor didático não estaria presente simplesmente no conteúdo das obras. Seria necessário também pesquisar a própria forma de representação teatral. De acordo com Brecht, o teatro deveria evoluir, assim como a sociedade — outrora relativamente estática — havia evoluído e perdido a homogeneidade e a estabilidade. Tratava-se então de captar esse processo de mudança e reconstituir as relações entre palco, público e mundo. A partir desses dados, Brecht passa a trocar a forma dramática do teatro pela forma épica, não somente no plano da dramaturgia propriamente dita como no da própria representação teatral.
A matéria-prima do teatro épico não é o indivíduo ou a sociedade considerados como entidades, mas as relações que os homens mantêm entre si. Assim, Brecht afirma que “o teatro épico se interessa antes de tudo pelo comportamento dos homens entre si, na medida em que esse comportamento apresenta uma significação histórico-social; dito noutra forma, naquilo que ele tem de típico”. O que aparece não são os sentimentos ou idéias dos indivíduos, mas aquilo que redunda numa ação.
A noção de conflito, característica no teatro tradicional, é transformada na noção de contradição. As personagens de Brecht não afrontam a sociedade num corpo decisivo e os encontros entre personagens fundamentais não levam a explicações definitivas. Na verdade, a cadeia dos comportamentos e palavras nunca implica uma decisão.
A peça, no teatro épico, passa a constituir-se numa narrativa, O espectador deve perder a ilusão de realidade, desmitificar o que ocorre no palco e aceitá-lo como teatro. Assim, afirma Brecht a propósito da montagem da Vida de Galileu (Leben des Galilei, 1937): . . . “a decoração do palco não deve ser de molde a fazer o público julgar que se encontra num quarto da Itália medieval ou do Vaticano, O público deve ser mantido na convicção de que se encontra num teatro”.
A essa concepção de texto e encenação acrescenta-se uma noção de interpretação, inspirada nos espetáculos chineses vistos por Brecht em Moscou. Interessando-se pelo jogo estético do teatro oriental, carregado de uma simbologia facilmente compreendida em seu local de origem, Brecht viu no distanciamento criado entre palco e platéia uma forma de trabalho aplicável no teatro do Ocidente. E criou um outro tipo de distanciamento, o Verfremdungseffekt, ou seja, “. . . novos efeitos destinados a retirar o selo familiar de acontecimentos suscetíveis de serem modificados pela sociedade”.
Distanciar não significa alijar o ator da personagem, o palco do espectador. Brecht propõe uma nova forma de compreensão e colaboração. O distanciamento, no teatro épico, resultaria da intervenção de todos os níveis de representação teatral. Mas o principal seria a perfeita adequação do ator: “para o ator é difícil e cansativo provocar em si, todas as noites, determinadas emoções ou estados de alma; em contrapartida, é mais fácil revelar os indícios externos que acompanham e denunciam essas emoções (. . .). O efeito de distanciamento não se apresenta como uma forma despida de emoções, mas, sim, sob a forma de emoções bem determinadas, que não necessitam encobrir-se com as das personagens”.
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