“Quem, hoje em dia, quiser combater a mentira e a ignorância e escrever a verdade tem de vencer, pelo menos, cinco obstáculos. Tem de ter coragem de escrever a verdade, muito embora por toda a parte ela seja encoberta; tem de ter a arte de a tornar manejável como uma arma; tem de ter capacidade para ajuizar, para selecionar aqueles em cujas mãos ela será eficaz; tem de ter o engenho de a difundir entre estes.”
Famoso por sua concepção inovadora do teatro, Bertolt Brecht coloca nessas palavras as coordenadas que orientaram todo seu trabalho artístico. Para ele, a poesia e o teatro não eram simplesmente maneiras de expressar a sensibilidade específica de um indivíduo, mas elementos ativos e dinâmicos dentro do processo social, cuja função seria determinar a verdade de cada acontecimento. Mas, por outro lado, Brecht não empregava o termo verdade como algo abstrato, no qual se deve crer em virtude da fé, e sim como uma demonstração da maneira pela qual os fatos ocorrem. Assim, o teatro seria um meio de levar as pessoas a raciocinar sobre o mundo que as cerca e de chegar às verdades sociais mais amplas.
A formação desse pensamento crítico levaria, de acordo com Brecht, a uma participação consciente do indivíduo na vida da coletividade. E essa participação implicaria uma adequação ao processo de mudança das coisas. Acreditando que a humanidade está constantemente evoluindo e transformando suas instituições —mesmo nos períodos históricos em que tudo parece imutável — Brecht via na busca da verdade o único caminho para uma arte consciente. Verdade que, afirma ele em um de seus artigos, estaria ligada à transformação das coisas e ao surgimento de uma nova era, pois “não há de pôr em dúvida que, no país onde vivo, se trabalha para a modificação do mundo, para a modificação do convívio dos homens. E talvez estejam comigo quanto a haver necessidade de uma transformação do mundo”.
A CRÍTICA AO EXPRESSIONISMO
Poeta e teatrólogo, Bertolt Brecht nasceu em Augsburg, na Alemanha, a 10 de fevereiro de 1898. Estudou Medicina e Ciências Naturais em Munique e, já em 1914, publicou seus primeiros poemas. Em 1924, mudou-se para Berlim, onde se engajou no Deutsches Theater, trabalhando com diretores como Max Reinhardt (1873 - 1943) e Erwin Piscator (1893 - 1966).
Sua formação artística foi bastante influenciada pelo movimento expressionista, que ele, entretanto, captou de forma especialmente crítica. Essa crítica vinculava-se a suas concepções políticas, que viam no expressionismo uma forma de alienação. Na verdade, os expressionistas ligavam-se ao momento histórico bastante complexo vivido pela Alemanha. Com a reconstrução do país após a Primeira Guerra Mundial, as mais diversas forças sociais permeavam as várias camadas da população alemã, provocando diferentes concepções de vida e expectativas contraditórias quanto ao futuro. Vivendo num constante clima de caos político, muitos voltavam-se para a experiência russa — então no início —, que buscava edificar uma nova ordem social. Outros encontravam no passado e no desejo de reviver o Santo Império Romano Germânico a esperança para um presente tumultuado. Mas havia também os que se refugiavam num cinismo sardônico, assumindo uma atitude de desprezo e rebelião total.
Acreditando na salvação do homem por meio do desenvolvimento espiritual, os expressionistas afirmavam, de acordo com as palavras de um de seus bastiões, Theodor Dauber, que “nossa época possui um grande desígnio: uma nova erupção da alma”. Caracterizando dessa forma os anseios de alguns setores da sociedade alemã, os expressionistas possuíam uma crença em comum: a fé no eu absoluto.
De acordo com eles, as coisas nada significariam por si mesmas, mas somente em função do que cada indivíduo acredita que elas sejam. Segundo o crítico Anatol Rosenfeld, “o autor ‘exprime’ suas visões profundas propondo-as como mundo. Este é apenas expressão de uma consciência que manipula livremente os elementos da realidade, geralmente deformados segundo as necessidades expressivas da alma que se manifesta. A idéia profunda plasma sua própria realidade”.
Os teatrólogos expressionistas passam a dedicar-se à construção de heróis, que simbolizam o homem como entidade abstrata. Em sua história, o herói é encarregado de mostrar tanto sinais do apocalipse como a esperança que deposita num futuro utópico.
Essa tendência tornou-se nítida quando o teatro expressionista passou a colocar personagens cada vez menos individualizados em cena. E, na medida em que representava idéias abstratas, o herói expressionista terminou por viver, no palco, uma derrota temporal e uma vitória espiritual ante uma sociedade imutável. Formalmente, as peças passaram a se caracterizar por uma estrutura típica: o Stationendrama.
Brecht, que via a história da humanidade como um processo dialético de transformação, baseado nas forças econômicas, não aceitava essa perspectiva abstrata de apresentação da realidade humana. E viu o expressionismo através de um filtro critico já visível em suas obras de juventude.
A primeira delas, Baal, escrita em 1918. possui a estrutura de um Stationendrama. Mas a peça é mais uma paródia das obras expressionistas do que propriamente uma peça escrita nesse estilo. Assim, enquanto as personagens expressionistas buscavam a contínua exaltação do espírito, Baal se revolve na matéria com um deleitoso horror: (. . .) “era um lugar em que alguém pode se sentir satisfeito de ter em cima as estrelas e embaixo os próprios excrementos”. (. . .)
Sua segunda peça, Tambores na Noite (Trommeln in der Nacht, 1922). também mostra essa reflexão crítica em relação ao expressionismo, com personagens individualizados e um tempo historicamente determinado. A peça narra a tomada do bairro dos jornalistas por um grupo de trabalhadores fato de repercussão na época. Relacionada com a própria participação política de Brecht — que chegou a integrar um conselho de trabalhadores e soldados de Augsburg —, Tambores na Noite desmitifica os heróis expressionistas, que buscavam valores transcendentes e mostravam um apego animal aos valores burgueses.
Em 1921, viajando para Berlim, Brecht dedica-se a uma nova obra, de caráter experimental. Ao buscar, de acordo com suas afirmações, “formas teatrais que correspondessem ao espírito de nossa época”, criou Na Selva das Cidades (Im Dickicht der Städte, 1922), concebida com a estrutura de um combate de boxe. Nessa peça, George Garga, um pequeno empregado de livraria em Chicago, e Shlink, um homem rico, lançam-se a uma luta sem quartel, na qual o segundo procura comprar a opinião do primeiro. Logo em seguida, Brecht inicia uma fase de produção bastante fecunda, com a adaptação, em 1923, de uma peça de Christopher Marlowe, Vida de Eduardo II da Inglaterra (Leben Eduards des Zweiten von England); trabalhou numa encenação de Macbeth, de Shakespeare, e na criação de quatro peças em um ato: O Mendigo, A Expulsão do Diabo, Lux in Tenebris e O Casamento. Nessas obras, gradativamente, Brecht se distancia dos dramas expressionistas, formulando concepções estéticas já bastante inovadoras. Como, aliás, soube perceber então o crítico Herbert lhering: “. . . Bertolt Brecht, um poeta de vinte e quatro anos, mudou o rosto da poesia alemã. Com Bert Brecht nasceu um novo tom, uma nova melodia, uma nova forma de ver”.
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